25 February 2007

OFF THE RECORDS

UNHEARD MELODIES

Já se deveria ter tornado consensual a ideia de que, desde 1927 — data do primeiro filme "sonoro", The Jazz Singer —, alguma da melhor música contemporânea foi escrita para (ou passou pelos) ecrãs de cinema e televisão. Ainda assim, e porque a tendência para a concentração na imagem e consequente abstracção em relação à banda sonora, contribui para transformar a "film music" nas tais "unheard melodies" de que fala Claudia Gorbman, é importante chamar a atenção para dois exemplos superiores dessa "neglected art" (aqui cito Roy Prendergast, outro historiador crucial na matéria) que, na avalanche de edições em DVD dos últimos meses de 2003, podem ter passado despercebidos. Vale a pena proceder contra-natura e fechar os olhos durante a sequência inicial de Once Upon A Time In The West de Leone/Morricone:


o guinchar de um pau de giz, um moinho de vento que range, um telégrafo, uma gota de água, o estalar de dedos, o zumbido de uma mosca, por fim, o estrondo da entrada do comboio, são os únicos eventos sonoros que, durante dez minutos, nos mergulham em pleno não-silêncio cageano (foi justamente por influência do pensamento de Cage que Morricone abdicou da música que para essa sequência originalmente escrevera e optou por este "sound design" definitivo) e, mesmo sem imagens, definem toda a atmosfera expectante de uma narrativa que, logo a seguir, conhecerá o primeiro instante convencionalmente musical (ou talvez não...) no gemido da harmónica de Charles Bronson/Franco De Gemini, a qual só muito mais tarde iremos também descobrir como personagem virtual e motor oculto da história. É apenas um momento de um assombroso filme que não só foi literalmente rodado sobre a partitura de Morricone previamente escrita como, sem ela, seria definitivamente outro.


Também acerca dos deliciosos quatro volumes das Looney Tunes/Merrie Melodies da Warner Brothers se poderia realizar o mesmo exercício: escutar a música sem as imagens, ver os desenhos animados sem música e, depois, observar como resulta a sobreposição final.


Para isso, em todos, há "extras" só com banda sonora que permitem avaliar como as geniais composições de Carl Stalling (delirantes cornucópias surreais de referências justapostas, distorcidas, desmontadas, aceleradas, fragmentadas, pulverizadas, de todos os géneros musicais) não se limitam ao "mickeymousing" proverbial de imagens pela música como constituem, em si mesmas, um arrojado valor musical acrescentado que custa a crer tenha sido consumido sem problemas de digestão estética por sucessivas gerações de todas as idades. O que, talvez, só no terreno dos "cartoons" e do cinema em geral possa acontecer. (2003)

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