20 June 2007

O NOME E A COISA


Às vezes, o nome nasce primeiro do que a coisa. Há vinte anos, sem estarem muito conscientes disso, cerca de três dezenas de representantes de editoras independentes, promotores de concertos e jornalistas inventavam um novo género musical começando por lhe dar o nome. Até aí, sem grande unanimidade, chamava-se-lhe "folk", "tradicional", "roots". Porém, naquela noite do Verão de 87, no "Empress Of Russia" (um pub do norte de Londres), após viva discussão, chegou-se a acordo acerca da designação "world music". Era uma forma simples e eficaz de caracterizar toda aquela incerta área "não pop/não rock", capaz, ao mesmo tempo, de convencer os responsáveis pelas lojas de discos a aceitar e arrumar de modo uniforme um contingente musical heterogéneo para o qual não existia até aí uma identidade única.

Elvis Presley: musica étnica aka world music
 
Ficava resolvido o problema da nomeação e, simultaneamente, nascia todo um campo de possibilidades para o que, invisivelmente, estava já em gestação: uma música com as raizes disseminadas pelas tradições do planeta mas sempre disposta a todos os cruzamentos transculturais e transcontinentais, apostada em contrariar a maldição de Babel. Pouco tempo depois, porém, o termo "world music" não só passava a incluir todas as experiências de fusão de linguagens planetárias e respectivas expressões locais como, quase de contrabando, por momentos, chegou a abrigar sob o mesmo guarda-chuva a própria "música antiga" (medieval e renascentista) e um sem número de géneros até então dispersos.

Mozart: musica étnica aka world music

Numa tentativa de dissipar o nevoeiro, houve quem, em vez de "world music", preferisse a formulação alternativa de "étnica". O que, esquecendo (inocentemente ou nem tanto) que Mozart, Elvis Presley ou a "paella" são tão étnicos como Ravi Shankar, Miriam Makeba ou o "chop suey", acaba por ser uma eficaz manobra de exclusão e virtual desclassificação de toda a produção exterior à etnia que decide sobre o que é ou não "étnico". Situação exemplarmente ilustrada por uma extraordinária informação extramusical surgida por altura do Campeonato do Mundo de Futebol de 1994, nos EUA: aí, o futebol é considerado um desporto "étnico". Isto porque, apesar de praticado por europeus, sul-americanos, africanos, árabes e asiáticos, é tudo menos norte-americano. Logo, "étnico". Portanto, mal amado.


Chirgilchin: musica étnica aka world music

Nada disto ultrapassaria a condição de mera discussão académica se não tivesse como consequência despejar para um ghetto "world/étnico" toda e qualquer expressão musical que não caiba na produção anglo-americana corrente. Para que conste, na FNAC de Paris ou na Virgin Megastore de Londres, Pedro Abrunhosa, Madredeus, Amália ou a cantora de jazz Maria João serão sempre irremediavelmente arrumados no expositor da música..."étnica". William Burroughs gostava de dizer que "language is a virus from outer space" e nunca lhe prestaremos demasiada atenção. (2007)

2 comments:

Anonymous said...

Ainda te acusam de seres um "relativista cultural"...

João Lisboa said...

Antes "relativista cultural" do que "relativamente culto".