21 July 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (VI)



"O que me atraiu para Nova Iorque foram os sapatos. Esta é uma das melhores épocas na história do calçado americano. É incrível o que se passa em Nova Iorque no sector da sapataria. Estava há muito tempo à espera disto. Bom, a verdade é que vim até cá por causa de um papel num filme chamado They Wept Their Faces Off For Him, a história de três freiras com uma vocação religiosa tão grande que é difícil acreditar nela. E outro filme também, All Dressed Up In Rags, com o Ernest Borgnine e o Adam Clayton Powell, um projecto cubano. Represento o papel de um padre do Haiti. Era dinheiro demais para deitar fora, por isso, fizemos uma reunião de família e saltámos todos para a carrinha, o Lucifer, o Wilhelm, o Monarch, a Sheila e eu. A maior saudade que eu tenho de Los Angeles é andar ao volante. O meu sogro ofereceu-me um Cadillac. Meu Deus, aqui já tenho 1500 dólares em multas de estacionamento! Como a minha matrícula é de New Jersey tratam-me abaixo de cão. Nova Iorque é um serviço de urgências, um íman, um narcótico, um idioma que só se fala aqui. Nova Iorque é mesmo a sério. A começar pelo clima. É indispensável um casaco quente, sapatos novos e um sítio para se viver. Em Los Angeles, somos nós que criamos as nossas próprias estações do ano, temos formas diferentes de definir o tempo e as relações entre as pessoas. Em Nova Iorque, as pessoas confrontam-se muito. Até gosto disso mas, ao mesmo tempo, apetece-me ir embora. Nova Iorque é uma cidade muito pesada para uma família. Estou a pensar em ir até ao Kansas. É um sítio muito plano onde eu seria a coisa mais alta no horizonte. Até eram capazes de me pôr um telhado em cima da cabeça. Não tenho problemas com tornados.

(...)

"Gravar um disco é uma coisa tão definitiva que dá comigo em doido. É o pior de tudo, ter de decidir coisas que vão ficar ali como se fossem uma tatuagem.

(...)

"Assim que puder, inscrevo os meus filhos na academia militar, antes que eles me possam dizer que não. Se decidirem ser bancários ou advogados, também não faz mal. Como o pai não tem jeito nenhum para isso, precisa de quem tome conta dele.

(...)

"Quando me apetece escrever uma canção, visto uma saia, bebo uma garrafa de Harvey's Bristol Cream Cherry, saio para a rua e, com o chapéu de chuva aberto na 8ª avenida, começo a recitar em altos berros o que vem escrito numa multa de estacionamento. Em Nova Iorque, nunca temos de nos preocupar por causa das palavras. Onde quer que seja, elas caem-nos em cima.

(...)



"Já experimentei cantar através de canos e de surdinas de trompete, para dentro de copos e através das mãos em concha... Claro que muitos destes sons se podem obter tecnologicamente mas, os que eu descobrir sozinho, prego-os à parede e chamo-lhes meus. Também não me parece que isto seja assim uma coisa tão arriscada. Mas, se calhar, ando de olhos fechados. Vem por aí uma pedra através da janela e eu não a vejo. Acha que eu devia andar com guarda-costas? 'Tom Waits, praticante de música perigosa... a banda está fortemente armada, trancaram as portas e estão neste momento a trabalhar com harmonium e saxofone baixo... Enviar urgentemente um grupo de operações especiais com gás lacrimogénio e tirá-los dali para fora'... Ná, não me parece que arrisque quanto devia. Sou mariquinhas demais. O que eu queria era ser capaz de saír daqui e viver sei lá onde. Um pouco 'Dr. Livingstone, I presume', está a ver?.

(...)

"A personagem que eu represento em Ironweed, o parceiro de Jack Nicholson, é já um papel importante. Tive de ler e tudo. Mas o Nicholson foi óptimo. Durante a audição, veio ter comigo e disse-me 'Espero bem que saibas de cor o teu papel porque podes ter a certeza de que não faço a menor ideia do meu'.

(...)

"Em Frank's Wild Years, tivemos de implantar cirurgicamente a peça no interior das canções. A peça é teatro kabuki burlesco, a história de um coração a palpitar num mundo digital enquanto procura um sentido à medida da paisagem americana.

(...)

"As minhas maiores desculpas por chegar com uma hora de atraso ao concerto. Mas estava a pôr o shampô no meu cão e ele também gosta que lhe aplique um amaciador a seguir. Quando se começa com estas coisas da toilette nem se dá pelas horas...

(...)



"Acho que vou ter de passar a impôr regras obrigatórias de roupa a usar para o meu público. Nem imagina como eles, às vezes, me aparecem... Fazem-me passar cada vergonha... Vou ter de falar individualmente com cada um deles. Não há dúvida que precisam de um consultor de moda. Temos de inventar qualquer coisa — talvez uma sugestão diferente em cada bilhete. Vou pedir ao Eldridge Cleaver para pensar nisso.

(...)

"Os músicos que, hoje, têm sucesso escrevem, essencialmente, jingles. É uma epidemia. Pior ainda são os artistas que se associam a campanhas publicitárias, da Chrysler-Plymouth à Pepsi. Odeio isso. Está dito.

(...)

"Estão sempre a pedir-me para usar as minhas músicas na publicidade e oferecem-me imenso dinheiro. Infelizmente não me apetece ir por aí. Posso precisar muito do dinheiro, mas cantar para um anúncio de papel higiénico? Não me estão a ver a assaltar um '7-11', pois não? Façamos as coisas com dignidade e poupemos às pessoas o trabalho de nos virem mijar na sepultura.

(...)

"Se o John Lennon sonhasse que, um dia, um tipo como o Michael Jackson iria decidir sobre o futuro da sua música, saltava do túmulo e dava-lhe um bom pontapé no cú de uma maneira que nós todos iríamos gostar de ver.

1987

(2007)

2 comments:

Ana Cristina Leonardo said...

Uma vez em Nova Iorque, um tipo enorme perguntou-me quando estávamos parados num semáforo: «Onde compraste esses sapatos?» Eu disse: «Las Vegas». Ele olhou para mim e perguntou-me: «Gostas de Dean?» Eu disse: «Adoro». Ele disse: «Pago-te uma bebida». «Ok», disse eu. E depois bebemos os dois uma data delas.

Lacrau said...

Parabéns pelo blog... tens bom gosto, costuma ajudar. cheers