16 October 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XVII)



"Ora aqui está uma coisa que descobri na festa de anos da minha filha: friccionei o lado de fora de um balão bem cheio e obtive aquele guincho habitual que os palhaços costumam produzir quando fazem animais com balões. Se pusermos goma de farinha nas mãos e o 'tocarmos', soa muito semelhante a um solo de Eric Dolphy ou aos gritos de um macaco com o pelo a arder.

(...)

"Li recentemente acerca de um cavalheiro de Patterson, New Jersey, que, em vez de mandar o seu velho carro para a sucata, decidiu recuperar todas as componentes e convertê-las em instrumentos musicais. Retirou as janelas deixando apenas a estrutura das portas e encordoou cada uma com cordas de harpa. A capota converteu-se em caixa de ressonância que também encordoou. Resultado: a 'Hood Harp' e a 'Door Harp' e a ressureição de um velho e bem amado carro.

(...)

"Por volta de 1982, a minha mulher, Kathleen, encorajou-me a tentar cantar através de um megafone da polícia para fazer sobressair a minha voz quando integrada num conjunto de instrumentos de timbre semelhante. Claro que é possível fazer o mesmo com um equalizador, mas não há nada melhor do que o som dramático do megafone. Também é interessante explorar os megafones concebidos para crianças que criam vozes de robot, astronauta ou de monstro. Descobri que, se zumbir através de um deles, consigo um som muito proximo do da guitarra dos Blue Cheer em 'Summertime Blues'."

1996



"Parece-me que a maioria dos artistas não é lá muito normal. Desde muito cedo, sofreram quase todos um golpe qualquer, uma morte na família ou o divórcio dos pais que os lançou numa viagem onde, a certa altura, dão consigo de joelhos, em frente ao jukebox, a rezar a Ray Charles. Ou então, vão à procura do pai que abandonou a família quando tinham nove anos e de quem apenas sabem que guia uma carrinha. Sem perceber muito bem como, acabam por se tornar um grande sucesso e aparecem na capa da 'Life'. É uma espécie de desforra catártica.

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"Um amigo meu que era condutor de ambulâncias, quando eu tinha 16 ou 17 anos, ofereceu-me um estetoscópio. Costumava sentar-me sozinho num quarto às escuras, retirava a membrana do estetoscópio e punha-a no buraco da guitarra. Foi esse realmente o primeiro momento em que ouvi a música assim tão de perto.

(...)



" Não ter ligado muito aos Beatles e aos grandes acontecimentos 'revolucionários' dos anos 60, tem um bocadinho a ver com a forma como decidimos apreciar as coisas. Sempre desconfiei muito de grandes grupos de pessoas que vão juntas a qualquer sítio. Um disco é apenas um disco. Se não me apetecer ouvi-lo agora, não o oiço. Oiço-o daqui a 30 anos. Descobriram-se potes de mel nos túmulos dos faraós e o mel continua tão fresco como no dia em que o puseram lá. É o mesmo com os discos. Captam um momento. A caminho daqui, ouvi 'Kicks' do Paul Revere & The Raiders e achei o maximo! E 'Wild Thing' e 'Louie Louie'... No outro dia, também ouvi 'Son Of A Preacher Man' e nem queria acreditar... aquele momento em que a Dusty Springfield canta 'the only one who could ever love me' com uma voz assim rouca e grave, que canção tão sexy! Está tudo aí para ouvirmos quando nos apetecer.

1999

(2007)

2 comments:

Ana Cristina Leonardo said...

gosto especialmente da explicação da psicanálise com final feliz, embora me pareça que os pais a guiarem carrinhas seja uma tipologia mais americana do que universal

ND said...

as minhas afinidades concentram-se, soberbas, no último parágrafo.