31 October 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XX)



"'Murder In The Barn' é como um conto da Flannery O'Connor. Compro os jornais locais todos os dias e eles estão cheios de acidentes de automóveis. Tudo depende do que nos atrai. Será o humor negro irlandês? A minha mulher também provém de uma família irlandesa.

(...)

"O Greg Cohen, o Robert Wilson e eu fomos ter com o William Burroughs a Lawrence, no Kansas. Parecia uma cimeira literária. Ele tirou-nos fotografias a todos no portão. Levou-me até à garagem, mostrou-me as suas pinturas à pistola e o jardim. Por volta das três, começou a olhar para o relógio à medida que se aproximava a hora dos cocktails. Pareceu-me muito sério e erudito. Era, evidentemente, um perito em cobras, insectos e armas de fogo. Para mim, foi uma influência tão grande como Kerouac. Em Pela Estrada Fora, ele era o Bull Lee, uma espécie de Mark Twain mais ousado. Parecia concebido para ocupar a posição de poeta laureado da nação. Tinha uma visão mais ampla, cheia de cinismo e maturidade com um grande sentido de ironia que ia direito ao coração da experiência americana.

(...)

"Hoje crio música muito mais agressiva do que quando tinha 23 anos? Pois é, estou sempre do lado errado. Deito fora o manual das instruções e, depois, fico a pensar como é que se monta o raio da geringonça... Não sei, talvez seja só eu a revoltar-me contra a luz que se vai apagando. Ou será, como se costuma dizer, que a juventude é desperdiçada nos jovens? Talvez, nos sintamos mais próximo desses sentimentos à medida que nos afastamos deles. O tempo não é uma linha recta ou uma estrada que nos vai afastando das coisas, é tudo exponencial. Tudo o que vivemos aos 18 anos permanece connosco. Todos os dias caem do espaço 43 milhôes de toneladas de poeira dos meteoros e o que isso terá a ver com isto, não faço a menor ideia.

(...)



"Quando se produz um disco que também se está a gravar, é preciso dividir as tarefas. Ou tratamos nós da quinta ou temos de subcontratar mão de obra. Nem sempre sou em quem trata da reparação do material eléctrico lá em casa, habitualmente chamo um especialista. Por isso, contratámos músicos profissionais, um grupo do qual, honestamente, não sei se farei parte... Crio as formas e, às vezes, atrevesso-me no meu próprio caminho. O essencial é trabalhar com gente capaz de sucumbir ao poder da sugestão. É uma espécie de experiência hipnótica em que, quando se pede aos músicos que toquem como se tivessem o cabelo a arder, eles sabem exactamente o que queremos dizer.

(...)

"Escrever canções com a minha mulher é assim: um segura no prego e o outro bate-lhe com o martelo. Colaboramos em tudo. Ela escreve mais inspirada por sonhos e eu pelo próprio mundo. Quando escrevemos canções, navegamos pelo meio da escuridão e não sabemos a direcção certa. Cinco minutos a mais e pode-se dar cabo de uma canção. Por isso, o tempo também participa do processo. Temos o nosso negociozinho familiar. Eu sou o prospector e ela cozinha. Eu trago o flamingo para casa e ela corta-lhe a cabeça. Eu meto-o na água e ela depena-o. Depois, ninguém lhe apetece comê-lo.

(...)

1999

(2007)

30 October 2007

O GOLPE DO MUNDO



Mão Morta - Há Já Muito Tempo Que Nesta Latrina O Ar Se Tornou Irrespirável

Há muitos, muitos anos, quando o mundo era jovem e o optimismo antropológico ainda reinava, sonhava-se com a criação do Homem Novo. E, de entre as muitas confrarias que conspiravam na sombra (comunistas pró-soviéticos, maoistas, trotskistas, guevaristas e infinitas seitas anarquistas), destacou-se uma heresia que realizou provavelmente a única crítica verdadeiramente radical do velho mundo que havia que derrubar e substituir. Eram herdeiros da visão dadaista, aplicavam-se na desmontagem dos mecanismos últimos por meio dos quais as sociedades modernas contemporâneas desenvolviam e perpetuavam a famosa "alienação" que Marx descobrira e, do Maio de 68 parisiense à insurreição punk de uma década mais tarde (podem ler essa parcela da "história secreta do século XX" em Lipstick Traces, de Greil Marcus), todo o pensamento subversivo mais original e provocador descendeu precisamente deles, os revolucionários da Internacional Situacionista.



Para sua glória (e inevitável desgraça de recuperação futura), a maioria das intervenções da IS traduziu-se em textos e slogans eminentemente citáveis: "Nada queremos de um mundo no qual a garantia de não morrer de fome se troca contra o risco de morrer de tédio", "O desespero da consciência fabrica os assassinos da ordem, a consciência do desespero, os assassinos da desordem", "A esperança é a trela da submissão", "Os revolucionários da Comuna deixaram-se matar até ao último para que também tu possas comprar uma cadeia estereofónica Philips de alta fidelidade" ou "Apoiamos incondicionalmente todas as formas de liberdade de costumes, tudo aquilo a que a canalha burguesa ou burocrática chama deboche. Naturalmente, está fora de questão prepararmos a revolução da vida quotidiana com base no ascetismo", dos quais (como eles próprios, sem dúvida, seriam capazes de prever...) vários se acabariam por converter em matéria prima publicitária da própria "sociedade do espectáculo" que denunciavam. Ou não se terá reparado ainda no "soixante huitard" famoso "Sejamos realistas, exijamos o impossível" espalhado por inúmeros "outdoors" das nossas cidades?



É sobre este património teórico insurrecional que se edifica Há Já Muito Tempo Que Nesta Latrina O Ar Se Tornou Irrespirável, o último álbum dos Mão Morta, capítulo seguinte num percurso de esventramento da irrealidade contemporânea que teve o seu momento mais friamente cirúrgico no anterior Müller no Hotel Hessischer Hof. Estruturado como uma colagem de canções, fragmentos de noticiários absurdos (ou nem por isso), "inserts" radiofónicos e "IDs" dos elementos do grupo, constrói um mosaico de panfletos elípticos talhados numa massa de rock espesso, abrasivo e granítico que se inicia com um "aviso à população": "Esta madrugada deu-se uma fuga do sector dos lazeres. O grupo Mão Morta abandonou o nicho alternativo que ocupava no mercado do entretenimento. Os seus membros, aptos a exercer diferentes ofícios, podem facilmente infiltrar-se noutros sectores da nossa democracia. São considerados perigosos. Qualquer informação relativa a estes indivíduos deve ser imediatamente comunicada ao jornalista da sua área". O que, de certo modo, corresponde exactamente à verdade.



Na qualidade de herdeiros daquele grupo de não mais de 70 elementos ("Um pouco mais do que o núcleo inicial da guerrilha na Sierra Maestra mas com menos armas, um pouco menos do que os delegados que estiveram em Londres em 1864 para fundar a Associação Internacional dos Trabalhadores mas com um programa mais coerente, tão poucos como os gregos das Termópilas mas com melhor futuro") que, entre 1957 e 1972, sonhou com a implosão de "uma civilização do prosaísmo e da minúcia vulgar, um ninho para os homúnculos de que falava Nietzsche", Adolfo Luxúria Canibal e acólitos retomam o trabalho de toupeira de Guy Debord, Raoul Vaneigem e restantes Situacionistas. E, como "anjos de pureza que invadem os lazeres", propõem-se ironicamente a missão de, "depois de uma espectacular fuga do mercado do entretenimento e de uma meteórica aparição no mercado da cultura", se concentrarem no ataque à "sociedade de consumo e ao lugar de mercadoria que ela lhes destina" através da publicação de um CD "já à venda nas boas discotecas". Mais um episódio, afinal, no desenvolvimento da "técnica do golpe do mundo" de Alexander Trocchi, essa "revolta cultural que deve tomar conta das redes de expressão geradoras do espírito (...), escora indispensável e infraestrutura arrebatada de uma nova ordem das coisas". Ou, na pior das hipóteses, apenas um bom purificador do ar... (1998)

29 October 2007

CIRURGICAMENTE EXTRAÍDO DA CAIXA DE COMENTÁRIOS DO POST ANTERIOR
(doador: manuel)



"We were just a rock band. This is how rock bands had evolved to that point. I know that punk has tried to revise this whole history. The purpose of punk was to hijack the destiny of rock music. The purpose of punk was to keep rock music from becoming smarter and to keep rock music from becoming more literate and to keep it from everything it is destined to be. The evolutionary path from 1956 to 1975 or 1976 to make it even. It's moving in a straight line. Elvis' great contribution was that he brought the narrative tool of abstraction and abstract thought to rural blues and hillbilly music, which at that time were dying forms. So the very beginning of rock music is the introduction of sophisticated abstraction and the use of sound as a narrative tool into a folk music. If you follow the line of evolution it grows ever more sophisticated and sound as a narrative technique grows and is subsumed into the mix very progressively until there is an explosion at the very end of the 60's, early 70's of analogue synthesisers that were creating just pure sounds. The influence of bands like Silver Apples, Can and Eno, the Kevin Ayers stuff, Cale. By the mid-70's rock music was really on the verge of dramatic leaps in terms of literateness. You had a bunch of bands appearing at that time like Pere Ubu and Talking Heads and the Residents and Television and a number of other groups, and all of the Cleveland groups were poised on the borders of a brave new world and that's why punk was invented - to stop all of that". (David Thomas, Pere Ubu)
(2007)

28 October 2007

O NOJO E A FÚRIA



PROTAGONISTAS

Malcolm McLaren – Bisneto de judeus Sefarditas portugueses, seguiu o percurso canónico do jovem rebelde-de-classe-média, via-escolas de Arte e insurreições avulsas associadas (Maio de 68 à distância, Situacionistas, glam-rock novaiorquino). Virgem aos vinte anos, foi Vivienne Westwood quem se empenhou – um tanto contra a vontade dele – em lhe modificar a condição, processo durante o qual (uma coisa leva a outra) acabariam por fundar a loja de roupas – “bondage”, S & M, Teddy Boy –, “Sex”/”Seditionaries”, em boa parte inspirada no estilo de Richard Hell (Voidoids e Neon Boys) que McLaren conhecera em Nova Iorque. Manager de The Strand, embrião dos Sex Pistols, definitivamente constituídos após o recrutamento de Johnny Rotten/Lydon na sequência de uma “audição” nas instalações da “Sex”. Durante a digressão americana de 1978 em que os Pistols se separam, a banda acusa-o de fraudes múltiplas, concluindo-se o litígio judicial entre grupo e McLaren apenas em 1987, com a vitória de Lydon nos tribunais.

Jamie Reid – Em 1976, Malcolm McLaren enviou um telegrama ao seu ex-colega do Croydon College of Art, Jamie Reid, dizendo-lhe “Sou manager destes tipos, gostava de voltar a trabalhar contigo”. Reid (responsável pela primeira publicação em lingua inglesa de uma compilação de textos Situacionistas), tornar-se-ia o inventor da marca iconográfica dos Pistols e, por extensão, do punk: “Não era o fenómeno pop que me interessava. Via o punk como parte de um movimento artístico que se desenrolara nos últimos cem anos, com raízes na agit-prop russa, no surrealismo, dadaísmo e Situacionismo”.

Johnny Rotten/Lydon – Descendente de sólida cepa irlandesa, bastou-lhe entrar na “Sex” com uma t-shirt dos Pink Floyd sobre a qual escrevera com caneta de feltro “I hate” e trucidar vocalmente sobre o jukebox da loja “Eighteen”, de Alice Cooper, para entrar instantaneamente para a mitologia pop. Embora McLaren tenha tido sérias dúvidas quando se apercebeu da sua simpatia por Captain Beefheart, os Neu! e Peter Hammill. “Rotten” foi um mimo de Steve Jones (guitarrista dos Pistols) após ter reparado no estado da sua dentadura.

Sid Vicious – O artigo genuíno em matéria de “bad boy”. Nascido John Simon Ritchie de uma mãe “drug dealer” em Ibiza, foi Rotten/Lydon quem o rebaptizou por lhe parecer existirem demasiados “Johns” à sua volta. Baixista rudimentar (e, em disco, frequentemente substituído). A 12 de Outubro de 1978, seria acusado do homicídio da namorada Nancy Spungen acerca do qual alegaria “não se recordar de nada”. Libertado sob caução da prisão de Rikers Island, a 2 de Fevereiro de 1979, morreria de uma overdose de heroína, generosamente oferecida pela mãe. “Os miúdos que crescem à volta de ‘junkies’ têm poucas opções de vida. Ao nosso pequeno príncipe foram oferecidas duas: olhar para a parede ou bater com a cabeça nela. Ele escolheu a segunda, repetidamente” (Nick Kent).

NEVER MIND THE BOLLOCKS



Teve uma versão “bootleg” anterior à data de publicação oficial (28 de Outubro de 1977) intitulada Spunk. Produzido por Chris Thomas (anteriormente, trabalhara com os Roxy Music, Procol Harum, John Cale e… Pink Floyd), era uma cacofonia deliberadamente primária (“Não me interessa a música, o caos é o que importa” – Johnny Rotten) e um ninho de víboras verbal : “God save the queen, the fascist regime, they made you a moron, potential H-bomb, God save the queen, she ain't no human being, there is no future, in England's dreaming” ou “I am an antichrist, I am an anarchist, dont know what I want but I know how to get it, I wanna destroy the passer by ‘cause I wanna be anarchy” definiram uma justíssima reputação blasfema e reforçaram um currículo confrontacional com editoras, cadeias de distribuição discográfica, o Estado e a monarquia. Desde então, nunca mais largou os lugares cimeiros de todas as votações de “all time best albums”.

ANTECEDENTES

MC5, The Stooges, New York Dolls, The Seeds, Ramones, The Kingsmen, Can, Roxy Music, The Pretty Things, garage-rock, reggae.


MC5 -"Kick Out The Jams"

DEFINIÇÃO

“Punk”: rufião, vadio, fedelho, bandido (“Go ahead, punk, make my day” – Clint Eastwood/Dirty Harry em Sudden Impact). Termo utilizado, em 1972, por Lenny Kaye na compilação Nuggets para definir o garage-rock.

ESTÉTICA

“Isto é um acorde... isto é outro... ainda um terceiro... Agora, forma uma banda” (do fanzine “Sideburns”, ilustrado com os acordes de Lá, Mi e Sol, de Dezembro de 1976)



APÓSTOLOS, HERÉTICOS E INIMIGOS

“Por um lado, Johnny Rotten/Lydon é um insecto zumbindo sobre as ruínas em massa de uma civilização arrasada por si mesma, o que, suponho, o justifica nesse papel. Por outro, é apenas mais um traficante de niilismo barato com tudo o que isso implica – racismo idiota, sexismo, etc. Vivo rodeado por psicóticos. Muitas vezes, suspeito ser um deles. É então que certos discos aparecem e percebo que não estou sozinho”.

“A questão, caro leitor, é que muito daquilo a que se chama punk reduz-se a dizer ‘eu não presto’, ‘tu não prestas’, ‘o mundo não presta’ e ‘estamo-nos nas tintas para isso’ – o que é… digamos… insuficiente. Não me perguntem porquê, sou apenas um observador. Mas qualquer observador poderá dizer que, se quisermos pôr as coisas em termos de Nós vs. Eles, dizer o que acima escrevi é exactamente o que Eles pretendem que Nós façamos, não passa de uma capitulação”. (Lester Bangs)

“Os punks eram feios. Sem quaisquer mediações. Um alfinete-de-ama de 25 centímetros que atravessa o lábio inferior e se cruza com uma suástica tatuada na bochecha não é uma afirmação de moda: um fã que enfia os dedos pela garganta para vomitar sobre as mãos e, depois, cospe o vómito sobre quem se encontra em cima do palco está a disseminar uma doença. Uma camada espessa de maquilhagem negra era uma sugestão de morte mais do que qualquer outra coisa. (…) Eles eram gordos, anorécticos, com marcas de bexigas e de acne, gaguejavam, eram aleijados, tinham cicatrizes, eram disformes e o que os seus adereços sublinhavam era o falhanço já carimbado sobre os seus rostos. De certo modo, os Sex Pistols permitiram-lhes aparecer em público como seres humanos, exibindo as suas mazelas como factos sociais”.



“Nada disto foi accidental porque Malcolm McLaren e Jamie Reid (que eram o Coronel Parker com educação universitária deste movimento) conheciam o Situacionismo e, de um modo errático, tinham estudado as políticas artísticas niilistas europeias até ao século XIX. Sabiam que a arquitectura podia ser tão repressiva como a lei. Acreditavam que a música que as pessoas ouviam todos os dias exercia um efeito tão grande sobre elas como aquilo que aprendiam na escola. Encaravam os discos como uma forma de desmontar conceitos que não eram postos em causa e que eram utilizados para assegurar a coesão social. Não penso que vissem os discos, as canções e os espectáculos como uma forma de mudar o mundo. Era mais como um atentado: ‘Vamos fazer explodir uma bomba e ver o que acontece’”.(Greil Marcus)

“Senti-me sujo durante 48 horas” (membro do Greater London Council, após um concerto dos Sex Pistols, in “New Musical Express” de 18 de Julho de 1977)

“Quando ouvimos ‘Anarchy In The UK’, dos Sex Pistols, o que imediatamente nos prende a atenção é que isto está realmente a acontecer! Isto é um tipo com a cabeça em cima dos ombros que, na verdade, está a dizer algo que sinceramente acredita estar a acontecer no mundo. E di-lo com veneno, com paixão autêntica. Toca-nos e assusta-nos – faz-nos sentir desconfortáveis. É como se alguém dissesse ‘Vêm aí os alemães e não há maneira de os fazer parar!’ (Pete Townshend/The Who)

ÓBITO

“Punk rock died when the first kid said ‘punk's not dead’ (David Berman/Silver Jews, in “Tenessee” de Bright Flight, 2001)



O MUNDO À VOLTA

20 de Janeiro – Jimmy Carter sucede a Gerald Ford como 19º Presidente dos EUA.
28 de Março – Através do embaixador Siqueira Freire, Portugal formalizou o seu pedido de adesão às Comunidades Europeias.
26 de Abril – A lendária discoteca novaiorquina “Studio 54” abre as portas.



28 de Abril – Um tribunal de Estugarda condena Andreas Baader, Gudrun Ensslin e Jan-Carl Raspe, elementos do grupo terrorista Facção do Exército Vermelho, a pena de prisão perpétua; seis meses depois, a 18 de Outubro, os três suicidam-se na prisão de Stammheim.
14 de Maio – No Hotel Ritz, a RTP organiza uma festa de lançamento da telenovela brasileira Gabriela, Cravo e Canela onde actuam Vinicius de Morais, Toquinho, Maria Creuza e um quarteto instrumental. O primeiro episódio será emitido dois dias depois e o último a 16 de Novembro. Nesse ano, existem, em Portugal, 150 aparelhos de televisão por cada mil habitantes.
5 de Junho – O primeiro computador Apple II é colocado à venda.



15 de Junho – Têm lugar as primeiras eleições democráticas em Espanha, após 41 anos de regime franquista.
13 de Julho – O grande apagão de Nova Iorque deixa a cidade sem energia eléctrica durante 25 horas, dando origem a inúmeros saques, assaltos e desordens – este acontecimento, tal como os assassínios em série de David Berkowitz (que será preso a 10 de Agosto), conhecido como “Son Of Sam”, figurarão no argumento de Verão Escaldante/Summer Of Sam, filme de Spike Lee (1999).
22 de Julho – O “Bando dos Quatro”, grupo dirigente da Revolução Cultural Chinesa, é expulso do PC da China e Deng Xiao Ping regressa ao poder.

NASCIDOS EM 1977

13 de JaneiroOrlando Bloom, actor britânico
2 de FevereiroShakira, cantora colombiana
8 de JunhoKanye West, rapper e produtor musical norte-americano
1 de JulhoLiv Tyler, actriz norte-americana
17 de JulhoM.I.A., cantora e música britânica
17 de AgostoThierry Henry, futebolista francês
13 de SetembroFiona Apple, cantora e compositora norte-americana

MORTOS EM 1977

2 de JaneiroErroll Garner, pianista e compositor de jazz norte-americano
14 de Janeiro - Anaïs Nin, escitora francesa
26 de FevereiroBukka White, bluesman norte-americano
10 de MaioJoan Crawford, actriz norte-americana
2 de JulhoVladimir Nabokov, escritor de origem russa
16 de AgostoElvis Presley, cantor norte-americano
19 de AgostoGroucho Marx, actor cómico norte-americano


12 de SetembroSteve Biko, activista do movimento de libertação sul-africano
13 de SetembroLeopold Stokowski, maestro britânico de origem polaca
16 de SetembroMarc Bolan, músico e compositor britânico; Maria Callas, cantora lírica norte-americana de origem grega
14 de OutubroBing Crosby, cantor e actor norte-americano
5 de NovembroRené Goscinny, autor francês da banda desenhada Asterix
5 de DezembroRoland Kirk, músico multi-instrumentalista de jazz norte-americano
19 de DezembroJacques Tourneur, realizador de cinema francês
25 de DezembroCharlie Chaplin, realizador e actor britânico

FILMES ESTREADOS EM 1977

Guerra das Estrelas – George Lucas
Encontros Imediatos de 3º Grau – Steven Spielberg
Annie Hall – Woody Allen
Eraserhead – David Lynch
A Febre de Sábado à Noite – John Badham
Suspiria – Dario Argento



New York, New York – Martin Scorsese
The Spy Who Loved Me/Agente Irresistível (James Bond) – Lewis Gilbert
Este Obscuro Objecto do Desejo – Luis Buñuel
O Amigo Americano – Wim Wenders
O Homem que Gostava das Mulheres – François Truffaut

ÁLBUNS PUBLICADOS EM 1977

Animals - Pink Floyd
Plastic Letters - Blondie
Chic - Chic
The Clash - The Clash
Exodus - Bob Marley & The Wailers
Heroes e Low - David Bowie
The Idiot e Lust For Life - Iggy Pop
Let There Be Rock - AC/DC
Little Criminals - Randy Newman
Marquee Moon - Television
Pink Flag - Wire



Motörhead - Motörhead
My Aim Is True - Elvis Costello
No More Heroes e Rattus Norvegicus- Stranglers
Peter Gabriel - Peter Gabriel
Rendez Vous - Sandy Denny
Rocket To Russia - Ramones
Saw Delight - Can
Songs From The Wood - Jethro Tull
Talking Heads: 77 - Talking Heads
Trans Europe Express - Kraftwerk
Suicide - Suicide
Rumours - Fleetwood Mac
(2007)

27 October 2007

HAIL TO THE THIEF!


Radiohead - In Rainbows

Não foi uma anónima banda de garagem dos subúrbios de Bolton, a lançar o barro à parede, na esperança de que o mundo repare nela. Não foi nenhum “geek”, adepto do bricolage electrónico, com o estúdio doméstico entalado entre a cama e a mesinha de cabeceira. É importante que se tenha a noção exacta da dimensão dos protagonistas do acto: os Radiohead são os autores de Ok Computer (1997), merecida ou imerecidamente, alojado instantaneamente em inúmeras listas de “all time-best albums”, dono de um Grammy para “Best Alternative Music Album”, trepador de inúmeras tabelas de vendas e mais ou menos unanimente considerado como o paradigma de um “neo-prog” contemporâneo; os mesmos Radiohead que, com Kid A (2000, mais um Grammy na mesma categoria), Amnesiac (2001) e Hail to The Thief (2003), arrebataram outros tantos prolongados primeiros lugares, pratas, ouros e platinas – e correspondentes milhões de lucros – nos “rankings” de circulação comercial de discos; uma banda, enfim, que, se quisermos procurar um paralelo viável, se poderia dizer que terá, hoje, um estatuto comparável ao dos Pink Floyd por altura de The Dark Side Of The Moon.


Foram, então, esses Radiohead que, na quarta-feira 10 de Outubro, se tornaram responsáveis por aquilo que, três dias antes, o “Times” designava como “The day the music industry died”: após, durante quatro anos, terem deixado a sua vasta legião de fãs à míngua de música, publicam o novo álbum, In Rainbows, colocando-o disponível para “download” na sua página da Internet, “ao preço que cada um quiser pagar”! Um cêntimo ou um milhão de libras, tanto faz. Tradução rápida e evidente: uma das mais notórias bandas mundiais assume publicamente que, para o bem e para o mal, a música gravada é já, tendencialmente, gratuita e que a única forma de minimizar os prejuízos é usar as armas do “inimigo”, passando a encarar o CD (físico ou virtual) como mero material de promoção para o que realmente conta – os concertos. “O que cada um quiser pagar” não só é, obviamente, simbólico (ainda que, segundo números não oficiais, até dia 12, tenham sido descarregados 1.2 milhões de cópias digitais, por uma generosa “doação” média de 8 dólares), como nem isso impediu que, no mesmo instante em que In Rainbows era oficialmente revelado, ele pudesse ser também logo pirateado por zero cêntimos nos lugares habituais (também não oficialmente, 1/3 do total de “downloads”).



Enquanto estratégia de “marketing”, deverá ser considerada, desde agora mesmo, exemplo obrigatório de “textbook”. Até porque o “espírito dos tempos” não sopra noutra direcção senão nessa: a vertinosa queda nos números de vendas de CD, nesta década, não pára de acelerar (no último ano, menos 10% em Inglaterra, 25% em França, 35% no Canadá); a cadeia de lojas HMV anunciou que, nos seis primeiros meses de 2007, as vendas se reduziram em 50% e Richard Branson, após prejuíxos de 50 milhões de libras, declara o óbito das Virgin Megastores; a EMI (cujo número de funcionários, em dez anos, a nível mundial, encolheu de 10 000 para 4 000) adquirida pelo grupo financeiro Terra Firma, vale, actualmente, um terço do que representava em 1997; paralelamente, a partilha de ficheiros ilegal pulveriza diariamente recordes (e torna risíveis todas as investidas “repressivas” sobre milhares de milhões de corsários) enquanto os números de público presente em concertos (com bilhetes a preços que, no caso dos Police e Rolling Stones, variavam entre as 70 e 150£), no Reino Unido – até ao final deste ano, 450 festivais de música –, cresciam 11%. Exemplo concreto: adquirir, agora, a discografia completa de Madonna fica por menos de metade do preço do bilhete mais caro (160£) para o seu concerto em Wembley, no Verão passado.


Bom, mas e o álbum propriamente dito? Primeiro, deve dizer-se que, para os sobreviventes coleccionadores indefectíveis do objecto físico, a partir de 3 de Dezembro, poderão encomendar uma “box” luxuosa com diversas faixas-extra, cópias em vinil e artwork caprichado, por umas valentes 40£. Há que continuar a jogar em todos os tabuleiros… A música, essa, para quem sempre preferiu os Radiohead como ponto de intersecção entre o “prog-rock” clássico e a neblina britânica de 80 que pairou entre Manchester e Liverpool e se sentiu defraudado com o (bastante mais entusiasmante) experimentalismo de Kid A e Amnesiac, é, em boa medida, um regresso às origens, instrumentalmente imaculado – o tipo acabado de álbum onde cada encadeamento de acordes, cada “subplot” rítmico, cada plano sonoro, está destinado a ser citologicamente analisado pela tribo “muso” –, amadurecido, mas demasiado preocupado com a arte final em detrimento da substância musical: à excepção de “Reckoner”, “Faust Arp” e “Weird Fishes/Arpeggi” (o que ficará realmente do álbum), o “doodling” ambiental predomina sobre a arquitectura excessivamente lassa das canções, o que o timbre vocal anemicamente neurótico de Thom Yorke acentua ainda mais severamente. Pirueta irónica final, a desmontar toda a nova lógica “CD gratuito/concertos rapidamente e em força”: segundo um porta-voz dos Radiohead, “Talvez eles, para o ano, se apresentem ao vivo meia dúzia de vezes. É que o Thom gosta muito pouco de tournées…”.
(2007)

26 October 2007

TOP 100 DO SÉCULO XX (II)
(organizado - ordem alfabética - para a revista Op em 2003)



BRIAN ENO - Eno Box I e II
BRUCE SPRINGSTEEN - Darkness On The Edge Of Town
BUSH TETRAS - Boom In The Night
THE BYRDS - Box Set
CABARET VOLTAIRE - Red Mecca
CAPTAIN BEEFHEART - Trout Mask Replica
THE CINEMATIC ORCHESTRA - Motion
THE CLASH - London Calling
THE COWBOY JUNKIES - The Trinity Session
DAVID ACKLES - American Gothic

[numa outra lista de 1999/2000 que ficou seriamente amputada e incompleta surgiu isto:

DAVID ACKLES
David Ackles (Road To Cairo, na edição norte-americana)
Produção: David Anderle e Russ Miller
Intervenientes: Michael Fonfara, Danny Weiss, Douglas Hastings, Jerry Penrod, John Keliehor, David Ackles
Primeira edição: Elektra, 1968

Quando, após mais de vinte anos fora de catálogo, os três discos de David Ackles para a Elektra foram reeditados em CD, um dos primeiros telefonemas de aplauso a chegar aos escritórios da Warner foi de Elvis Costello. À excepção de um quase-hit na voz de Julie Driscoll ("Road To Cairo"), praticamente ninguém o conhece. Mas, quem o conta na lista dos seus, sabe o tesouro que possui. American Gothic (álbum do ano para o "Melody Maker", em 1972), a terceira gravação, comparada (justamente) com Aaron Copland, John Ford e David Lynch, será a jóia oficial da coroa mas foi no extraordinário primeiro álbum — acompanhado pelos Rhinoceros, então a "house band" da Elektra — que a escrita, o canto e a música de Ackles desbravaram o caminho que, depois dele, Tim Buckley, Leonard Cohen, Scott Walker, Tom Waits, Randy Newman e o Nick Cave das Murder Ballads haveriam de trilhar. Herdeiro de uma família do "show business" do Illinois, criança-prodígio da TV, preso cinco vezes por roubo enquanto jovem, estudante da antiga língua saxónica na universidade de Edimburgo e de cinema na Califórnia, interessado por música coral e para bailado, trabalharia, a seguir, como pianista, jardineiro, segurança de uma fábrica de papel higiénico, responsável por um jardim infantil, detective privado e vendedor de automóveis. Um educativo curso intensivo para quem, como ele, desejava conhecer a América profunda e retratá-la em música. Gravou três discos cruciais, reformou-se como professor universitário e morreu em 1999, aos 62 anos, de cancro do pulmão.

OUVIR TAMBÉM: Subway To The Country (David Ackles); Music From Big Pink (The Band); Murder Ballads (Nick Cave): Songs Of Love And Hate (Leonard Cohen); Climate Of Hunter (Scott Walker); The River (Bruce Spingsteen); Sail Away (Randy Newman); Small Change (Tom Waits)]
(2007)

25 October 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XIX)



"O Troubadour, em Los Angeles, era o lugar certo para tocar, nos anos 70. Punham uma grande fotografia nossa na vitrine e, se esgotássemos a lotação, estávamos em grande. O nosso nome era anunciado, um foco ilumináva-nos ao pé da máquina dos cigarros e acompanháva-nos até ao palco. Doug Weston, o patrão, aparecia e declamava 'The Love Song Of J. Alfred Prufrock'. Depois, havia tipos a tripar que queriam contar histórias. Era como o programa do Ed Sullivan sem o Ed. Chegava a haver gente que viajava até lá à boleia só para estar vinte minutos em palco.

(...)

"Houve provavelmente mais canções de Small Change do que de outros discos que continuei a cantar em concerto. Há canções que se escrevem e nunca mais queremos saber delas. Outras, cantamo-las todas as noites e continuamos a perguntar o que querem dizer. 'Tom Traubert's Blues' foi, decerto, uma das canções que mais cantei e com que encerrava os concertos.

(...)

"Na altura em que o Francis Ford Copolla me convidou para escrever as canções de One From The Heart, já tinha decidido afastar-me dessa cena 'lounge'. Quando ele me sugeriu uma opereta 'lounge', pensei 'chegaste com dois anos de atraso'. Para mim, isso estava no fim. Tive de voltar atrás e trazer tudo de volta. Foi como estar a crescer e bater com a cabeça no tecto. As pessoas têm uma imagem de nós a partir da qual nos definem e sabem o que hão-de exigir. É complicado mudar de atitude e operar mudanças no clima. Transportamos connosco a percepção que o público tem de nós.

(...)



"Não sei se consegui conciliar muito bem essa tensão entre canções agrestes e suaves. Apetecia-me mais misturá-las do que colocá-las lado a lado. Ou, se calhar, é como rebentar uma parede a murro e, depois, pedir desculpa, o reflexo alcoólico. Provavelmente, tem mais a ver com as festas a que ia quando era adolescente. Havia quatro ou cinco canções rápidas e, a seguir, uma mais lenta em que se convidava as raparigas para dançar. Nunca me devo ter esquecido desse ciclo musical. Os DJs também funcionam assim. Está relacionado com o ritmo cardíaco. Há canções mais rápidas que o ritmo do coração e outras mais lentas. Acho que sempre distingui as duas.

(...)

"Para onde quer que se vá, o lugar terá de nos afectar. Em Nova Iorque, andei mais pelos clubes onde a mistura musical era maior. Em Greenwich Village, partilhava um quarto com o John Lurie e o Evan, o irmão dele. Escrevíamos canções até às tantas. O problema, quando se tem putos, é que se pode ficar a pé até às cinco da manhã mas é preciso voltar a casa para lhes dar de comer.

(...)


"Muito do mérito em Swordfishtrombones foi da minha mulher, Kathleen. Esse disco foi o primeiro que fizemos sem um produtor externo. Foi ela que me disse que eu era capaz de o fazer. Estava convencido que era milionário e não tinha mais de 20 dólares no banco. A Kathleen ouviu os meus discos e percebeu que havia muitos géneros musicais que me interessavam e que eu nunca tinha explorado. Ela é uma DJ fantástica. Fez-me ouvir imensos discos. Foi ela quem, realmente, co-produziu esse disco. Eu andava à procura de música que se ajustasse melhor às personagens das canções em vez de as vestir todas com o mesmo fato como acontecia até aí.

(...)

1999

(2007)

24 October 2007

TOP 100 DO SÉCULO XX (I)
(organizado - ordem alfabética - para a revista Op em 2003)



ABBA - The Definitive Collection
AIMEE MANN - Bachelor nº2 (Or The Last Remains Of The Dodo)
AMERICAN MUSIC CLUB - Mercury
ANITA LANE - Dirty Pearl
AZTEC CAMERA - High Land Hard Rain
BEACH BOYS - Pet Sounds
THE BEATLES - Revolver/The White Album/1967-70

[numa outra lista de 1999/2000 que ficou seriamente amputada e incompleta surgiu isto:

THE BEATLES
1967/1970
Produção: George Martin (excepto "Across The Universe" e "The Long And Winding Road", produzidas por Phil Spector)
Intervenientes: John Lennon, Paul McCartney, George Harrison, Ringo Starr e vários
Primeira edição: Apple, 1973

Os Beatles transformaram o mundo. O mundo da música popular e o outro. É oficial. Mas, agora que o recuo histórico já é suficiente, também não custa muito dizer que a banda que, na origem, não era nada de muito mais extraordinário do que aquilo a que hoje, naturalmente, chamaríamos uma "boys band" (e o exercício de "marketing" que os impôs deverá ser reconhecido, se calhar — no contexto histórico e social da época —, como o mais genial do século), foi, por diversas vezes, bastante sobrevalorizada e subvalorizada. Até Help, de 1965 (quando Bob Dylan lhes mostrou a via para Deus na ponta de um charro ou numa viagem de LSD), os então "Fab Four/Moptops" faziam apenas rock primordial ligeiro — inspirado por Elvis, Buddy Holly, Chuck Berry, Little Richard, Carl Perkins e os Everly Brothers — mas suficientemente frívolo e "andrógino" (oh!, aqueles inocentes cabelitos por cima do colarinho...) para abalar a desgraçada moral espartana da época. Rubber Soul (1965) iniciou a viagem no interior do labirinto musical e mental que o fabuloso Revolver (1966) concretizou magistralmente naquilo que terá sido a primeira obra prima da pop moderna e de que Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band (1967) — francamente inferior mas que, coincidindo milagrosamente com a atmosfera do primeiro "Summer of Love", ganharia estatuto mítico e simbólico — foi a coroação planetária. É, porém, na compilação do duplo "álbum azul" de 1973 que se encontra a mais rica e representativa colecção de canções dos Beatles em todo o seu simultâneo esplendor pop e espírito de aventura experimentalista. O primeiro disco, então, é definitivamente, o ponto culminante da escrita de Lennon e McCartney: "Penny Lane", "Strawberry Fields Forever", "Hello Goodbye", "Hey Jude" e "Lady Madonna" (antes, apenas disponíveis em single), "I Am The Walrus", "The Fool On The Hill" e "Magical Mystery Tour" (do mal amado filme do mesmo nome), "Sgt Peppers", "Lucy In The Sky", "A Day In The Life", "All You Need Is Love" e "Revolution" não têm igual em nenhum outro álbum pop. E o segundo — excluindo alguma sacarina de McCartney e outros harrisonismos adventícios —, com "The Ballad Of John And Yoko", "Come Together", "Don't Let Me Down", "Get Back", "Back In The USSR" e "Across The Universe" não lhe fica muito atrás.

OUVIR TAMBÉM: Fifth Dimension (The Byrds), Buffalo Springfield Again (Buffalo Springfield), The Kink Kronikles (The Kinks), Their Satanic Magesties Request (Rolling Stones), John Lennon/Plastic Ono Band (John Lennon); Goodbye And Hello (Tim Buckley); Song Cycle (Van Dyke Parks); Imperial Bedroom (Elvis Costello), Giant Steps (Boo Radleys), Tropicália (Vários), You Can' Hide Your Love Forever (Orange Juice); Repercussion (DBs); Apple Venus Volume I (XTC), Sisters (The Bluebells), High Land Hard Rain (Aztec Camera), Martinis & Bikinis (Sam Phillips); Parklife (Blur)]

BJÖRK - Post/Live At The Union Chapel (bootleg)

[porém - prova de que todas as listas são provisórias -, numa outra lista de 1999/2000 que ficou seriamente amputada e incompleta surgiu isto:

BJÖRK
Debut
Produção: Nellee Hooper/Björk
Intervenientes: Marius De Vries, Paul Waller, Martin Virgo, Garry Hughes, Luis Jardim, Bruce Smith, Nellee Hooper, Jhelisa Anderson, Corki Hale, Jon Mallison, Talvin Singh, Sureh Sathe, Oliver Lake, Gary Barnacle, Mike Mower.
Primeira edição: One Little Indian, 1993

A população da Islândia, como se sabe, não chega para esgotar dois estádios da Luz. Pelo que nunca seria de esperar que, de um território que conta dois habitantes por quilómetro quadrado, emergisse uma das figuras centrais da pop na última década do século. Mas foi precisamente desse rochedo vulcânico plantado em pleno Atlântico Norte que Björk Gudmunsdottir, a bordo de uma banda de alegres anarco-punks — os Sugarcubes —, começou por deixar sem fõlego o universo pop com uma canção ("Birthday") e um álbum (Life's Too Good, 1988). Não tardou muito, porém, para que se compreendesse (e, lealmente, sem nunca o confessar, ela também o entendeu) que os Sugarcubes poderiam ser os melhores amigos mas eram demasiado limitados para poder conter o seu imenso talento vocal, de "soundwriter" e (vir-se-ia a saber, cerca de dez anos depois, com Dancer In The Dark) de actriz. Debut foi simultaneamente a candadidatura e a conquista do estatuto de — como a "Face" então a caracterizou — "seriously devastating diva". Produzido pelo "mastermind" dos Soul II Soul, Nellee Hooper, e encaminhando para o interior de uma estrutura sonora assente nos procedimentos da "club culture" os mais variados idiomas musicais, é um dos mais perfeitamente acabados exemplos daquilo que a própria Björk designa como "a matemática das emoções". Desconfortável com todas as categorias e a todas elas aberto, Debut abriga uma colecção de canções radicalmente modernas na forma de articular os elementos sonoros mas que, ao mesmo tempo, se referem à matriz clássica e tanto a veneram como a distorcem e alojam num enquadramento onde as regras de relacionamento são definitivamente outras.

OUVIR TAMBÉM: Violently Live (bootleg), Post e Homogenic (Björk); Dummy (Portishead); Londinium (Archive); Come From Heaven (Alpha); Organism (Jimi Tenor); Attica Blues (Attica Blues); Whiskey (Jay Jay Johanson); Lamb (Lamb); Unter Anderen Bedingungen Als Liebe (Laub); Midnite Vultures (Beck); City Watching (Two Banks Of Four)]

BLUE NILE - Hats

[numa outra lista de 1999/2000 que ficou seriamente amputada e incompleta surgiu isto:

THE BLUE NILE
Hats
Produção: The Blue Nile
Intervenientes: Paul Buchanan, Robert Bell, Paul Joseph Moore
Primeira edição: Linn Records/Virgin, 1989

Com uma discografia total de três álbuns (A Walk Across The Rooftops, de 1984, Hats, de 1989 e Peace At Last, de 1996) para dezanove anos de carreira, os Blue Nile serão ou a banda mais patologicamente perfeccionista de todos os tempos ou a mais preguiçosa. Tudo aponta, contudo, para que a primeira hipótese seja a verdadeira. E, tanto assim é que, desde o início (e muitíssimo injustamente porque o trio de Glasgow é bastante mais do que isso), os Blue Nile foram encarados como uma banda de audiófilos — essa tribo exótica de gente que venera a excelsa qualidade do som acima de todas as coisas. Sintomaticamente editados, desde o princípio, pela Linn (um fabricante de aparelhagens de alta fidelidade), ouvir apenas isso é ouvir pouco. A Walk Across The Rooftops é, talvez, aquele que mais se presta a esse tipo de associação de ideias — tudo nele é obsessiva e minuciosamente perfeito, dos arranjos à disposição espacial dos sons — mas foi em Hats que o universo cinematicamente nocturno do grupo melhor se traduziu num conjunto de sete sublimes canções em que a voz de Paul Buchanan deslizava sobre os tapetes de veludo dos sintetizadores como uma panorâmica aérea sobre as luzes de uma metrópole que mergulha lentamente na escuridão. Lá em baixo, adivinha-se a existência de gente, ruas, emoções, farrapos de diálogos, movimento. E, esses, seriam registados, a seguir, em "zoom", por Dummy e Blue Lines.

OUVIR TAMBÉM: Dummy (Portishead); Blue Lines (Massive Attack); The Space Between Us (Craig Armstrong)]

BOB DYLAN - Bringing It All Back Home/Highway 61 Revisited/Blonde On Blonde/Basement Tapes (c/ The Band)

(2007)
INTERNATIONAL RUMI YEAR (VIII)
"Only the holder the flag fits into and wind. No flag"



Keep walking, though there's no place to go to.
Don't try to see through the distances.
That's not for human beings. Move within,
but don't move the way fear makes you move.



No better love than love with no object,
no more satisfying work than work with no purpose.
If you could give up tricks and cleverness,
that would be the cleverest trick.

(trad. Coleman Barks e John Moyne)

(2007)

23 October 2007

DEPARTAMENTO "PEQUENOS ÓDIOS DE ESTIMAÇÃO" (XII)

OS SUSPEITOS DO COSTUME



Vashti Bunyan - Lookaftering

A história (com "h" minúsculo e maiúsculo) começa a repetir-se demasiado enjoativamente. E segue, essencialmente, este plano narrativo: 1) músico dos anos 60/70 grava álbum que, na altura, é "barbaramente" ignorado; 2) durante décadas, garantem-nos, os raros exemplares sobreviventes são ciosamente guardados por um "inner circle" de iniciados que, não só os veneram como se do próprio prepúcio de Jeshua se tratasse, mas ainda os copiam e fazem circular clandestinamente, de mão em mão, espalhando a boa nova; 3) quando, no grande desígnio cósmico, finalmente, os astros são favoráveis ao acolhimento e consagração pelo povo eleito, o álbum é reeditado e criticamente recebido por coros de "hossanas" que louvam o génio miseravelmente ignorado pelos coevos mas, agora, justamente elevado à sua merecida e transcendente dimensão. A coisa tende a passar-se na área folk e regiões limítrofes (já lá vamos) mas não lhe está necessariamente circunscrita. Decisivo mesmo é que a(s) criatura(s) em causa seja(m) irremediavelmente obscura(s) por causa da indispensável aura de "artista maldito". Aconteceu recentemente com First Utterance, dos Comus (1971), Red Hash, de Gary Higgins (1973), e também com Just Another Diamond Day, de Vashti Bunyan (1970) que é o que, agora, nos interessa.



É um típico episódio dos patéticos "golden sixties": jovem estudante de Arte é expulsa da escola e entrega-se à música; uma ou duas almas penadas qualificam-na como "a nova Marianne Faithfull" ou "o Bob Dylan feminino"; nada acontece; a jovem estudante, por intermédio do amigo Donovan (para os menos íntimos: "o Bob Dylan britânico" de então), tem notícia de que o paraíso hippie existe e está localizado na ilha de Skye; com um cão, um namorado, uma guitarra e uma carroça de ciganos, viaja até ao jardim do Éden para, à chegada, descobrir que as crianças floridas se tinham já aborrecido de tanta felicidade e regressado a Babilónia; após mais uma expedição ao Lake District (bom gosto tinha ela), grava álbum com notáveis da folk (Dave Swarbrick, Simon Nicol, Robin Williamson), produzido por Joe Boyd; nada acontece; filhos, "vida no campo" e trinta anos de solidão; 2000 — reedição do álbum e glória. Suspeitos? Os do costume: a catatua Newsom, as manas Coco, o profeta Banhart (isso, "free-folk", "psych-folk", "freak-folk", ou lá o que é). Com direito a segundo álbum — este —, aos 60 anos, e prévio EP (Prospect Hummer) com os Animal Collective. Como eram (e são, porque se mantêm exactamente iguais), então, as canções de Vashti Bunyan? O género de vestidinho de chita musical para meninas de tranças e malmequeres no cabelo, entoada por uma voz incapaz de perturbar o hálito de libélulas. Não há paciência. (2005)

22 October 2007

A MODERNIDADE É MUITO ANTIGA



Vários - OHM: The Early Gurus Of Electronic Music (1948-1980)




Raymond Scott - Manhattan Research Inc. (New Plastic Sounds And Electronic Abstractions)

Diz Bill Laswell: "A música electrónica faz agora parte do nosso sistema de vida. Integrou-se na na nossa forma de existir, é a pulsação daquilo que fazemos. Tudo é electrico, tudo é electricidade. Essas pulsações não são diferentes do batimento do coração ou do ritmo da respiração. Na idade electrónica tudo se relaciona". Afirma DJ Spooky: "Imagino que quando, daqui a alguns séculos, se olhar para o século XX, se descobrirão os sinais de uma civilização mundial consumida pelas tecnologias de comunicação que utilizava. Para mim, a música é um espelho no qual observamos como se formam as estruturas culturais. Raça, hierarquia social, classe, origem nacional: o século XX assistiu a uma interrogação de todas estas questões a um nível global e, em certo sentido, a música electrónica foi a banda sonora dessa intensa investigação acerca da condição humana". Acrescenta David Toop: "Quanto mais recente é a música popular, mais se sente a influência da música electrónica. Pense-se, por exemplo, na influência da música concreta ou em técnicas como o 'tape editing' usado por John Cage ou a utilização electrónica do giradiscos. Tudo isso são, hoje, lugares comuns em todas as formas de música popular como o hip hop, a house ou o drum'n'bass. Praticamente tudo aquilo em que formos capazes de pensar foi, de uma forma ou de outra, influenciado pelas inovações da música electrónica". Remata Brian Eno: "A revolução electrónica transformou mais do que a nossa capacidade para controlar os parâmetros físicos do som. Convertendo o som num material plástico — manipulável no espaço e no tempo — aproximou o processo de composição dos processos das artes plásticas e visuais. Os pintores impressionistas aspiravam à 'condição da música', invejando a sua capacidade para ser simultaneamente abstracta e emocionalmente envolvente. Entretanto, grande parte da composição musical do nosso século acercou-se da condição da pintura ou da escultura à medida que os compositores começaram a conceber a música como uma experiência táctil no tempo e no espaço".


Varèse/ Xénakis/Le Corbusier - poème electronique (1958)

Reproduzidas estas citações (retiradas do excelente livrete de cerca de cem páginas que acompanha OHM: The Early Gurus Of Electronic Music), quase seria suficiente referir os nomes que integram a caixa de três álbuns editada pela norte-americana Ellipsis Arts. Mas, se se adiantar que, de La Monte Young a Varèse, Xenakis, Stockhausen, Holger Czukay, Jon Hassell, Messiaen, Steve Reich, Klaus Schulze, John Cage, Robert Ashley, Pierre Schaeffer, Sonic Youth ou Terry Riley, praticamente a totalidade dos nomes mais significativos da música electrónica contemporânea no período compreendido entre 1948 e 1980 se encontra aqui representada nestas 42 faixas, talvez já se fique com uma ideia mais aproximada do tipo de importância que esta publicação assume enquanto panorâmica de conjunto do fenómeno musical que contribuiu para definir os contornos de considerável parcela da atmosfera sonora do século. E, se calhar, igualmente se tornará evidente como as investigações electro-acústicas então desenvolvidas com um caracter experimental e "de vanguarda" — como refere David Toop — passaram em boa medida para aquilo que se tornou procedimento quase de rotina na própria música popular.



Era essa, aliás, já a atitude de Raymond Scott, outro pioneiro americano ignorado da música electrónica que, nos anos, 40, 50 e 60, a par de uma carreira de sucesso como músico de "screwy pseudo jazz" com o seu quinteto (cujo reportório seria, em grande parte, utilizado pelo genial Carl Stalling nas bandas sonoras dos desenhos animados da Warner), se entretinha, em colaboração com Robert Moog, a inventar os primeiros sequenciadores, a conceber outros instrumentos electrónicos como o Clavivox, o Electronium (que interessaria Berry Gordy, o patrão da Tamla Motown), o Rhythm Modulator ou o Bass Line Generator e a utilizá-los em inúmeras peças propriamente musicais ou destinadas a ilustrar "jingles" publicitários de rádio e pequenos filmes, nomeadamente com o criador dos Muppets, Jim Henson.


Raymond Scott+Jim Henson - "Limbo - The Organized Mind" (1974)

É, justamente, esse precioso arquivo de extraordinárias bizarrias sonoras que Manhattan Research Inc. (incluindo também indispensável livrete de perto de 150 páginas) agora — após a publicação em CD desses outros antepassados da "ambient music" à maneira de Brian Eno que foram Soothing Sounds For Baby — traz à luz, revelando como muitas das supostas inovações atribuidas, por exemplo, aos criadores do "krautrock" têm, na realidade, uma ascendência consideravelmente anterior. Das meras gravações "de demonstração" a micro-óperas publicitárias (como a inacreditável "Paperwork Explosion" criada para a IBM), a prodígios de imaginação e humor (os "jingles" para as Vicks Medicated Cough Drops, Vim e Sprite), a exercícios de proto-techno e "sampling" (a versão minimalista radical de "Night And Day", "IBM Probe", "The Rhythm Modulator" e "Electronic Audio Logos"), aos pré-enoismos de "Cyclic Bit" ou ao assombroso "Limbo" que faz pensar no Tom Waits de Nighthawks At The Diner em viagem de exploração freudiana pelo interior do seu cérebro, estes dois CD são o exacto género de indispensabilidade que ajuda verdadeiramente a compreender como, muitas vezes, a modernidade é uma coisa muito mais antiga do que se poderia supôr. (mais aqui)
(2000)

21 October 2007

PECHISBEQUE
 

Como os melhores homens de negócios, o londrino Christopher Pinchbeck (1670 - 1732), tinha um olho no lucro e outro naquilo que respondia às exigências do tempo. Havia gente que gostava de exibir joalharia vistosa mas não tinha dinheiro para comprar ouro? Era arriscado viajar pelas estradas da época, infestadas de salteadores, com as "family jewels" demasiado à vista? Pois bem, o senhor Pinchbeck oferecia a solução para o problema: uma liga de cobre e zinco — aquilo que, para toda a eternidade lusófona, em corruptela epónima do seu apelido, passaria a ser conhecido como "pechisbeque" — que, à vista desarmada dos não demasiado conhecedores, passava muito bem por ouro. Pode ser pindérico mas, o que parece, é. Até ver. Imagino que não terá sido pelo facto de Christopher Pinchbeck se ter dedicado também à construção de "autómatos musicais" — ainda que não deixe de ser igualmente interessante... — que a Associação Fonográfica Portuguesa se tenha decidido a entrar na lógica do "pechisbeque". Mas, numa época em que, depois do dinheiro fácil (demasiado e pacoviamente fácil), os tostões se contam um a um e os bandoleiros do "download" espreitam em cada esquina da Internet, a corporação da indústria discográfica nacional nem sequer pestanejou: o galardão de "disco de ouro" valia 20 mil cópias? Deixem-se de tretas... acaba-se com a "prata" (10 mil) e a "prata velha" passa a ser igual ao "ouro novo" (os mesmos 10 mil exemplares). A "platina" eram 40 mil? Corta-se isso por metade e 20 mil chegam e sobram. Não nos lixem. Crise é crise. Pode ficar tudo igual mas salvam-se as aparências. É Portugal. E, que raio, o Pinchbeck até era inglês e não morreu pobre... Parece que, lá para Setembro, a "prata", em segundas núpcias, poderá ser ressuscitada para as miseráveis cinco mil cópias, a fim de "estimular os novos valores" *. O que é preciso é não dar parte de fraco. A República Checa, a Áustria, a Bélgica, a Dinamarca, a Noruega, a Hungria, a Grécia ou a Irlanda também não podem cantar de galo. Toca a todos. Mas a malta safa-se... Quando "isto" acabar, logo se vê. É prata mas parece ouro. É ouro mas parece platina. O Pinchbeck é que sabia. Quando tivermos tempo, pensamos nisso a sério.

* afinal, parece que não...

(2005)

20 October 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, 
DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XVIII)

"Descobrir o jazz e Jack Kerouac por volta de 68 foi como quando se compra um disco que se leva debaixo do braço de modo a que toda a gente o possa ver. É uma questão de identidade. Senti que tinha descoberto uma coisa tão importante que, se pudesse, levava-a à cabeça.

(...)

"San Diego era uma cidade de marinheiros. Toda a gente que eu conhecia era de famílias da marinha. O meu pai tinha-se ido embora de vez e os pais dos outros tinham partido para as Filipinas durante oito meses. Ninguém tinha os pais à mão. Vivíamos ao lado de uma família em que a mulher se chamava Buzz Fledderjohn. Media, para aí, um metro e noventa e não tinha unhas. O marido era um tipo importante na marinha e foi para Guam durante ano e meio. Criou quatro filhos. O quintal dela era um sítio esquisito com carpas no tanque. O mais importante é que nunca me deixou lá entrar. Na verdade, escrevemos uma canção sobre ela mas acabou por não aparecer neste disco. A partir de uma certa idade, o que San Diego tinha de bom era haver muitas lojas de tatuagens. Tenho o mapa da Ilha de Páscoa nas costas. E o menu completo da Napoleone's Pizza House na barriga. Quando lá trabalhava, a partir de certa altura, desistiram de imprimir os menus. Eu ia até às mesas e levantava a camisa.

(...)



"As primeiras canções que interpretei em público? Meu Deus, nem pense que lhe vou dizer a verdade. Durante os primeiros anos, era um programa só de Schoenberg. Não, a sério, tocava 'Hit The Road Jack', 'Are You Lonesome Tonight', coisas muito banais. Tinha de entrar o mais cedo possível no show business. Devia ter mudado de nome mas, por essa altura, já era tarde demais.

(...)

"A personagem-Tom Waits? Rouba-se um bocadinho daqui, outro dali. Umas coisas velhas, outras novas, um farrapo de pano azul, o chapéu do pai, a roupa interior da mãe, a moto do irmão, os tacos de bilhar da mana e aí vamos nós. Quer dizer, sou o Frank Sinatra ou o Jimi Hendrix? Ou o Jimi Sinatra? Claro que sou ventríloquo como todos os outros. Ninguém se rala se estamos a dizer ou não a verdade. No nosso ramo de actividade, não me parece que isso seja muito importante. As pessoas só querem que lhes contem alguma coisa que não saibam já. Façam-nas rir ou chorar, não interessa. Se estamos a ver um filme muito mau e alguém nos diz 'Sabias que é baseado numa história verdadeira?' será que o filme deixa de ser mau? Sei lá o que é a verdade... Quantos alemães são precisos para mudar uma lâmpada? Quantos espermatozóides há numa única ejaculação? Quatrocentos milhões. E custa muito a acreditar que nós todos somos os que ganharam a corrida, não custa?

(...)

1999

(2007)
LUVA BRANCA



Vincent Delerm - Les Piqûres D’Araignée

A sucessão de Gainsbourg está assegurada. Ao terceiro álbum, Vincent Delerm arruma definitivamente a questão e fá-lo da única maneira capaz de assegurar que não restem dúvidas residuais: treze canções de puríssima excelência que confirmam tudo o que os anteriores Vincent Delerm e Kensington Square anunciavam. Mas, note-se bem, Delerm não navega pelos mares sulfúricos do autor de “Bonnie & Clyde”: se o instinto melódico e a leveza do toque são da mesma escola, a sua ironia calça a luva branca de Truffaut e Rohmer e as relações de proximidade na família pop alargam-se até Stephin Merritt ou Neil Hannon.



Pelo que não é, naturalmente, um acaso que este último partilhe com ele a bilingue “Favourite Song” (uma deliciosa confissão de perplexidade perante os textos de canções em idiomas que dominamos mal), o que se poderia perfeitamente prolongar nos outros momentos de devoção perante as pernas de Steffi Graf, de desencanto perante a França “pareil qu’hier” ou de imobilização da memória e do tempo como “j’ai conservé sur moi des fragments au hasard, tu disais à Naples il y a peu d’endroits pour s’asseoir”. (2007)

18 October 2007

QUARTO DE BRINQUEDOS



The Most Serene Republic - Population

A capa é perfeita: uma cidade-miniatura no chão de um quarto de brinquedos. Poderia ser uma radiografia da alma colectiva deste septeto de Milton, subúrbio de Ontario, no Canadá: a música em estado de jogo permanente, construída, peça a peça, no interior de cada canção e uma após a outra, como quem acrescenta elementos a uma geografia imaginária e se diverte infinitamente enquanto o faz.



Imaginem uns Arcade Fire que fossem realmente tão bons quanto a lenda apregoa (não, muito melhores do que isso!), capazes de modelar amplas massas corais e instrumentais – pode e deve dizer-se mesmo “orquestrais” –, ao mesmo tempo que tendem para aquele género de pop minuciosamente intrincada e construída com pinças de que Andrew Bird registou a patente. Deixem que o espírito de um Phil Spector com melhores maneiras paire sobre este cenário, não franzam o sobrolho à leitura da palavra “épico” e andarão razoavelmente próximo da localização desta fantástica república pop que, segundo os seus autores é “o romance definitivo” para o qual o anterior (e já nada desprezável) Underwater Cinematographer (2005) tinha sido apenas “o bloco-notas e livro de recortes”. (2007)

17 October 2007

OBJECTOS MÁGICOS



Punch-Drunk Love (real. Paul Thomas Anderson)

* Em Punch-Drunk Love, há um harmonium que é como o monolito de 2001-Odisseia No Espaço ou a "caixa de Pandora" de Lulu On The Bridge: um objecto mágico (notar que, no filme, ninguém nunca sabe exactamente como designá-lo) vindo de lado nenhum que, instantaneamente, instala uma nova ordem no modo de os acontecimentos se processarem, determina, orienta e progressivamente estrutura a narrativa através da própria forma como o seu segredo vai (ou não vai) sendo desvendado; ao mesmo tempo um "trickster" gerador de acasos e coincidências e de uma lógica (pré-determinada?) de invenção da melodia e da harmonia "clássicas" no interior da dissonância e da desordem.



* Um harmonium é, evidentemente, um instrumento musical pelo que — se, simplistamente, quiséssemos ficar só por aí — não seria de todo um disparate afirmar-se que Punch-Drunk Love é um filme que estrutura o ritmo interno de acordo com o desenvolvimento da sua banda sonora, que esta lhe oferece a razão de ser da própria dinâmica narrativa e vive segundo as curvas e inflexões que ela vai, de momento a momento, exigindo. Adensa, às vezes até à claustrofobia, o espaço psicológico, aligeira as tensões até à dimensão da "féerie", sublinha, comenta, acrescenta sentidos e multiplica ângulos de visão num filme que se poderia encarar como um musical de quase uma só canção mas em que tudo é inventado a partir de um sistema circulatório musical/sonoro que, do início até ao fim, o irriga.



* No anterior filme de Paul Thomas Anderson, Magnolia, havia, em função equivalente (uma espécie de côro que ia sendo distribuido pelas "vozes" das diversas personagens), as canções de Aimee Mann e, em segundo plano, já também a música de Jon Brion, figura voluntariamente discreta ao lado dela como de Fiona Apple ou Rufus Wainwright. Aqui, a música não só oferece a respiração vital ao organismo fílmico: a partir da própria banda sonora como que se poderia realizar uma outra leitura paralela do filme que se desenvolve em torno de um eixo constituído pela muito chapliniana valsa-tema, a desdobra em múltiplas facetas e tonalidades, acrescenta-lhe percussões labirínticas acústicas e electrónicas, planta-lhe inesperadamente ao meio o delicioso kitsch ultra-romântico de "He Needs Me" cantado por Shelley Duvall (extraido do Popeye, de Robert Altman), o rock'n'roll presleyano de Conway Twitty (apenas ouvido quase subliminarmente, em fundo) e uma ou duas pincelados de exotismo havaiano como motor de uma história na qual o aparentemente ingénuo "boy meets girl" é apenas o pretexto para um fabuloso exercício formal.



* Paralelamente ao modo como, da desestruturação e disfunção psicológica, social e afectiva de Barry — notar como, em dois momentos, isso se reflecte também, física e metaforicamente, nos labirintos que ele se vê obrigado a percorrer —, a pouco e pouco, vai emergindo um padrão viável de lidar com os acontecimentos, as duas ou três notas que, desajeitadamente, ele vai conseguindo arrancar ao harmonium (e que irão ser a matriz do tema orquestral principal do filme que, ao longo deste, irá sendo declinado em diferentes variações) acabarão por descobrir a lógica maior e completa de um motivo musical plenamente desenvolvido. Nesse processo de literal recomposição musical e narrativa, da desordenada atmosfera sonora que habita a cabeça de Barry (o sufocante, esgotante, cansativo acumular de percussões electro-acústicas), por efeito do encontro simultâneo com o harmonium e com Lena, acaba por libertar-se um desenho musical muito tradicionalmente harmónico, tão tradicional, enfim, como o "happy end" do desfecho. Ou, pelo menos, tão "happy" quanto o "here we go" final pode deixar antever. (2002)