21 January 2008

OS ÚLTIMOS TOSTÕES

Qualquer pretexto é bom para uma expedição de assalto às caves onde se arquivam os fundos de catálogo: os tempos não estão para aventuras e tudo o que possibilite contabilizar uns últimos tostões através da recuperação, reavaliação e reciclagem de vetustas “masters” há muito a acumular pó nas prateleiras – uma qualquer efeméride, um filme que vem mesmo a propósito, uma súbita infatuação de alguém subitamente em destaque ou… coisa nenhuma – há que ser aproveitado para, tanto quanto ainda é possível (e cada vez é menos possível), acrescentar algum valor positivo à contabilidade de uma indústria que nunca sonhou ter alguma vez de se reconverter tão rápida e drasticamente como agora, irremediavelmente, deverá acontecer. O que, se tende a fazer acumular robustas pilhas de discos a que não é fácil prestar a devida atenção no decurso do período de edições correntes, por outro lado (entre o inevitável entulho que, por arrasto, é desenterrado nesse processo), permite, muitas vezes, oferecer uma segunda vida a gravações que já não andariam propriamente na ponta da lingua da maioria dos seus potenciais apreciadores.

Control – o óptimo filme de Anton Corbijn em torno da figura de Ian Curtis – foi, sem dúvida, o rastilho para o “repackaging” em formato “collector’s edition” (isto é, embalagem de luxo com segundo CD obrigatório de concertos “históricos” e “booklets” repletos de fotos e textos informativo/analíticos) de Unknown Pleasures (1979), Closer (1980) e Still (1981), dos Joy Division. Em rigor, nada de extraordinariamente significativo acrescentam a quem já conheça e possua as publicações originais (Unknown Pleasures é uma obra-prima e Closer um assombrosamente austero epitáfio esculpido em mármore pelo próprio Curtis) mas – ainda que o espírito dos consumidores de música gravada ande cada vez mais longe de se deixar seduzir por objectos físicos de plástico, por mais atraentes que sejam –, cavalgando a onda gerada pelo filme, não é impossível que algum peixe venha à rede. Que, reconheçamo-lo, é uma excelente rede. Exactamente o mesmo que se terá de dizer acerca de Big Science, de Laurie Anderson (em altura de 25º aniversário), e de Songs Of Leonard Cohen (1967), Songs From A Room (1969) e Songs Of Love And Hate (1971), a inicial trilogia de ouro do poeta/songwriter canadiano: nenhum deles se encontrava em estado de inacessível clandestinidade mas todos incluem rica iconografia pronta a estimular a salivação dos fãs, a “bonus-track” de cortesia e devida contextualização (no caso do clássico de Laurie Anderson, da autoria dela mesma). Logo, peças exclusivamente para coleccionadores ou – imensa felicidade a desses! – dirigidas a quem, através delas, trave o primeiro conhecimento com Cohen e Anderson.

História inteiramente diferente é a de In My Own Time (1971), segundo e último álbum de Karen Dalton, de quem foi também já reeditada a estreia It’s So Hard To Tell Who’s Going To Love You The Best (1969), e que, provavelmente, ficarão como aquilo que de melhor alguma vez ficaremos a dever a Devendra Banhart e Joanna Newsom que contribuiram para gerar o “buzz” em torno desta figura trágica e praticamente ignorada da Greenwich Village dos anos 60. Venerada por Dylan (que, nas suas Chronicles, se refere a ela como “a minha cantora preferida da club scene”), por Nick Cave (nos arrebatados louvores que sobre ela derrama num dos textos do “booklet” desta reedição, afirma “she knows how to be sad”) e por diversos outros que, à época, a escutaram, Dalton, intérprete e executante de banjo de origem Cherokee, era, simultaneamente, uma voz com todos os desastres do mundo colados a si e uma personagem que, aparentemente, tudo fazia para que isso se convertesse também na matéria da própria vida. Alcoólica, heroinómana, insegura e vulnerável, após o insucesso de In My Own Time (que nunca desejou realmente gravar), abandonou a hipótese de uma carreira musical e, pouco depois, entregar-se-ia para sempre a uma existência de “homeless” nas ruas de Nova Iorque onde, em 1993, acabaria por morrer de overdose. Deixou dois belíssimos álbuns para os quais a designação (que ela abominava) de “Billie Holiday da folk-country”, apesar de tudo, continua a ser a mais apropriada.

Um quase idêntico estatatuto de “revelação” poderão ter para muitos os quatro álbuns de Caetano Veloso agora igualmente reeditados – Caetano Veloso (Tropicália) (1967), Caetano Veloso (1969), Caetano Veloso (A Little More Blue) (1971) e Araçá Azul (1972). Se os dois primeiros, contemporâneos da eclosão do Tropicalismo, incluem futuros clássicos como “Alegria, Alegria”, “Soy Loco Por Ti América”, “Tropicália”, “Clarice”, “Atrás do Trio Eléctrico”, “Não Identificado” ou “Os Argonautas” onde, cerzindo o “zeitgeist” eléctrico da pop e do psicadelismo desses anos com a batida cardíaca do Brasil mais puramente mulato e a visão de Rogério Duprat, Caetano provocava a colisão frontal da música popular brasileira com o futuro (só vinte anos mais tarde a pop internacional, deslumbrada, registaria os sinais desse sismo), é nos outros dois que residirão as maiores surpresas: A Little More Blue – gravação do exílio londrino após a perseguição pela ditadura brasileira – maioritariamente escrito e cantado em inglês, espécie de melancólico manifesto interior de distância e ausência projectado nas miragens de “London, London” ("I am lonely in London without fear, I'm wandering round and round here, nowhere to go, while my eyes go looking for flying saucers in the sky”) e, sobretudo, Araçá Azul, inclassificável cornucópia sonora de poesia fonética, concretismos, passagens orquestrais e labirintos bahianos.

Naturalmente, por cá (embora reeditar não seja um hábito instituído), a colecção “Do Tempo do Vinil” também apostou nesse filão, recuperando cinco títulos “perdidos”: Alibi, de Manuela Moura Guedes (1982), essencialmente interessante pela participação da “backing band”/equipa de compositores – os GNR, com Vitor Rua – e pela inclusão do “single” “Flor Sonhada”/”Foram Cardos, Foram Prosas”, já que, enquanto intérprete, Moura Guedes nunca faria (não fez) propriamente história; Com Uma Viagem Na Palma da Mão, de Jorge Palma (1975), a sua datada mas ainda valiosa estreia em estúdio; Missing You – Integral 1965/1967, dos Sheiks, mera memorabilia da rudimentar primeira infância da pop/rock/lusa; Mistérios e Maravilhas, dos Tantra (1977), testemunho de como o pesadelo do rock progressivo em versão indigente nacional era um pesadelo ainda maior (o que se poderá confirmar em Mestre, dos Petrus Castrus, de 1972, também agora republicado pela CNM); e, a anos-luz de todos os outros, o magnífico Independança, dos GNR (1981) – com Os Homens Não Se Querem Bonitos, ainda o duplo pico criativo da banda de Rui Reininho –, estojo de canções memoráveis como “Agente Único”, “Hardcore” ou (no original) um lado inteiro (“Avarias”) de glorioso aventureirismo experimental em tempo real. (2007)

9 comments:

Anonymous said...

Os fundos de catálogo... ui... quem começa a vasculhar as colector's choice, water music, rhinos, etc... cai em desgraça, ou não se não cai.

Esses dois discos da Karen Dalton vão direitos ao coração.

Diz que a letra da "London, London" foi ditada pelo Zeca Afonso entre repasto de caldo verde e pastéis de bacalhau, será verdade?

Anonymous said...

Foi, foi. E também se diz que o caldo verde foi feito com as receitas vaqueiro da Maria de Lourdes Modesto...que o Caetano apreciou muito...

gorgulho said...

Uma coisa boa que tinham os vinis era o tamanho ser suficiente para que as capas valessem por si. Encolhidas para formato CD já não é a mesma coisa (quadagésima terceira variante de no meu tempo é que era. A capa do Closer foi das melhores que alguma vez vi. O seu "classicismo romântico", passe o oxímoro, dava vontade de cortar os pulsos, ainda antes de ouvir o disco. Então depois...

Anonymous said...

»uma coisa boa que tinham os vinis era(...)as capas valerem por si. Encolhidas para formato CD já não é a mesma coisa»

Pois é. E daqui para a frente, o mais provável é nem direito a capa termos...

Anonymous said...

Joy Division é a tragédia que os Doors tentaram, mas só eles e os Echo & The Bunnymen conseguiram. Cohen é um génio musical e poético e está tudo dito (apesar da última fase da sua carreira me merecer algumas reticências...). Laurie Anderson conheço e aprecio bastante, mas já sobre Karen Dalton, tenho que confessar a minha total ignorância (li as crónicas do Dylan e nem tomei nota da referência que lhe é feita. Bom, lá vou ter que andar à procura dos álbuns...). Se quanto a reedições de música pop portuguesa feita antes de lhe nascerem os dentes, só vale mesmo a pena vê-las como anedota, o caso dos GNR é a excepção. Aqui, música pop nacional era uma aventura não só para quem a fazia mas também para quem a ouvia.

Anonymous said...

"Foi, foi. E também se diz que o caldo verde foi feito com as receitas vaqueiro da Maria de Lourdes Modesto...que o Caetano apreciou muito..."

É o que vem referido no booket da reedição do "traz outro amigo também", agora se é verdade...

João Lisboa said...

"Uma coisa boa que tinham os vinis era o tamanho ser suficiente para que as capas valessem por si. Encolhidas para formato CD já não é a mesma coisa (quadragésima terceira variante de no meu tempo é que era)"

Não era, é. Por isso é que os CDs estão em acelerado processo de extinção e o vinil - nunca "regressará", evidentemente - até vai recuperando algum terreno perdido.

Anonymous said...

Os discos do Caetano foram reeditados em vinil.

Anonymous said...

Talvez não se deva dar demasiada importância a uma capa. No fundo, não servirá esta apenas para armazenar um disco? Sinceramente, não tenho resposta. Mas, se, efectivamente, lhe queremos dar relevância quando consegue transmitir úma imagem certeira da música que vamos ouvir, então tanto merece destaque a capa do vinil como a do cd. Se já aqui se falou da edição em vinil de «closer», eu vou contrapor com a edição em cd de «very» dos Pet shop boys. Poucas vezes, como então, a embalagem foi o verdadeiro espelho da música e vice-versa, e poucas vezes foi tão adequado (para ambas) o significado da palavra pop....