21 February 2008

DEUS NO EXÍLIO



One Plus One/Sympathy For The Devil - real. Jean-Luc Godard, 1968

Mick Jagger, Keith Richards, Charlie Watts, Bill Wyman e Nicky Hopkins (Brian Jones, já num limbo muito privado, é quase uma figura ausente) deambulam pelo estúdio numa pausa das inúmeras "jams" que acabariam por dar origem a "Sympathy For The Devil" e, sobre as imagens, em "voice over", escuta-se uma narrativa de ficção política alucinada na qual Nixon, no Politburo, examina os cadáveres de Dubcek e Guevara, Lyndon Johnson vê um filme de Warhol, o papa Paulo VI protagoniza uma cena tórrida com a bela venezuelana Pepita e Grace Kelly e Salazar trocam mimos.



É um dos núcleos de cristalização da não-narrativa de One Plus One, o filme de Jean-Luc Godard que, em contraponto com os acontecimentos de Maio de 68 em Paris e com as várias sublevações políticas e culturais que, ao mesmo tempo, ocorriam nos EUA e na Europa — Black Power, hippies/yippies, oposição à guerra do Vietname —, pretendeu erigir um duplo discurso político/musical contraditório, provocador, paradoxal. Cerca de quarenta anos depois, dever-se-à acrescentar também patético, demagógico e grotescamente datado. Porque, independentemente do lugar que ao autor de À Bout de Souffle está, sem dúvida, garantido na história do cinema, é impossível não ver esta obra do Godard "maoísta" sem, pelo menos (hipótese generosa), um pronunciado sorriso irónico perante tão integral conglomerado de todo o kitsch político e "contracultural" das décadas de 60/70. Sempre com os Stones em fundo e quase como separador, três outros eixos sustentam One Plus One: num cemitério de automóveis, um grupo de militantes Black Panther, por entre a sucata, vomita imprecações contra o Ocidente, em paralelo com o fuzilamento de mulheres brancas (apesar de o seu porta-voz confessar que "adora brancas e odeia pretas"), enquanto declara que "o nosso inimigo é o branco";



numa loja de revistas pornográficas — e, aí, há que saborear a deliciosa ingenuidade das ilustrações porno da época —, o vendedor recita passagens do Mein Kampf, de Hitler, que são pagas com a saudação nazi e o repetido esbofeteamento de dois jovens que, imediatamente, gritam "Paz no Vietname!" ou "Viva Mao!"; uma figura feminina, Eve Democracy, vagueando por um bosque, é entrevistada acerca de temas trepidantes como "o orgasmo é a única altura em que não consegue enganar a vida?", "para ser um intelectual revolucionário a única alternativa é deixar de ser intelectual?", "acha que a droga pode ser uma forma de jogo espiritual?" ou "será que o Diabo é Deus no exílio?". Há, certamente, uma alegoria implícita (o Lúcifer que Jagger — ícone da "revolta juvenil" — corporiza seria esse anti-Deus forçado ao exílio pela burguesia "fascista" e opressora) mas, nesta sequência de quase "cartoons" involuntariamente clownescos, pelo meio de muitas outras, uma falha lógica sobressai: quando o assanhado activista do Black Power acusa a pop dos "brancos de classe média a precisar de cortar o cabelo" de ser "uma versão urbana do rock'n'roll roubado aos negros tal como a Motown de Detroit é uma versão manhosa de todo o R&B e gospel", não deveria estar ele a pensar... nos Rolling Stones? Provavelmente, Godard responderia, citando Mao, que as contradições são o motor da revolução. Exactamente da mesma forma que não teve problemas em admitir que, a despeito de toda a sua transbordante retórica marxista, nunca tinha lido Marx.

(2006)

1 comment:

gorgulho said...

O tempo é um juiz implacável cuja pena mais dura é o total ridículo.
Giro, giro é tentar adivinhar quem são os candidatos contemporâneos a futuros palhaços. Michael Moore parece-me muito bem colocado. Al Gore? Seria bom sinal...