26 April 2008

SUBSCREVER O PACTO



Há oito anos – estava prestes a ser publicado Esta Coisa Da Alma –, pouco depois de, na sala do Concertgebow de Amsterdão, Camané (então, a primeira voz do fado, após Amália Rodrigues, a pisar aquele palco) ter convertido instantaneamente um público esmagadoramente holandês àquela particular liturgia do silêncio que a canção tradicional de Lisboa exige, ele procurava explicar-me como concretiza essa aparente impossiblidade de comunicar um universo inteiro de sentidos sem tropeçar no estorvo dos idiomas: “Só tenho uma resposta para isso: procurando fazer passar o prazer e a emoção que sinto em cantá-las. São talvez esse prazer e essa paixão que passam para as pessoas. O fado tem espaço para tudo, possui uma liberdade enorme sem que o sentido das palavras se perca. É essencial pensar no que se está a dizer, compreender o que se diz e senti-lo. As coisas saem-me como se estivesse a falar mas, ao mesmo tempo, estou a cantar, a transformar o que digo numa canção. Às vezes, tenho consciência de que essa austeridade pode funcionar contra mim, muitas pessoas querem é circo. Mas o fado não pode ser uma exibição de virtuosismo vocal”.



Concentremo-nos nestas duas últimas afirmações: escutar Camané – e já, por diversas vezes o testemunhei – é totalmente incompatível com a atitude convencionalmente descomprometida de quem se dispõe a assistir a um qualquer concerto. Ou aceitamos subscrever esse pacto de austeridade que exclui os mínimos gestos e tiques fáceis de “crowd pleasing” ou, como água e azeite, cantor e público se separam irremediavelmente. E, três anos depois de Amsterdão, ele desenvolveria esse seu programa privado e acrescentar-lhe-ia um ponto: “É muito importante que um disco de fado possa ser imediatamente identificado como fado. Os fados tradicionais têm uma estrutura, uma espécie de chão musical, a partir do qual as palavras têm de ganhar côr e ser interiorizadas, como se criassem uma outra melodia dentro da que já existe. Para mim, no cantar o fado, tem de haver um lado de autenticidade e de verdade que é uma mais valia. Eu sei qual é o meu caminho, não estou no meio de nenhuma guerra, o tempo é que vai permitindo que eu faça as coisas que tenho de fazer”. Sempre de Mim, agora editado, só não deverá ser classificado como o momento mais elevado da discografia de Camané porque tudo o que o antecede não é menor e não é possível adivinhar o que, a seguir virá. Mas é, sem dúvida, o lugar onde, definitivamente, à voz, textos, melodias e tudo o que, inevitavelmente, os excede será inteiramente impossível alterar uma partícula: os dois inéditos de Alain Oulman sobre poemas de Pedro Homem de Mello para Amália (e só Camané os poderia abordar...), os originais de José Mário Branco e Sérgio Godinho e as outras diversas variações sobre o “chão” tradicional circunscrevem de modo mais que perfeito aquilo que só poderá ser, hoje, o território do fado, esse mesmo que, nas palavras de Fernando Pessoa de que ele se apropria em “Ser Aquele”, revela a fundamental indeterminação das suas coordenadas: “Ser feliz é ser aquele e aquele não é feliz, porque pensa dentro dele e não dentro do que eu quis”. A mecânica quântica nunca chegaria tão longe. (2008)

3 comments:

Anonymous said...

Antes de mais, bem-vindo regresso ao mundo dos vivos!

«Sempre de Mim, agora editado, só não deverá ser classificado como o momento mais elevado da discografia de Camané porque tudo o que o antecede não é menor e não é possível adivinhar o que, a seguir virá.»

É verdade, mas (ainda só escutei o álbum 3 vezes), parece-me que a arte do Camané está, de disco para disco, cada vez mais depurada (se isso ainda é possível) e amadurecida. E «Ser aquele» é a própria essência do fado. Melhor, até hoje, só o «Cansaço» na voz da Amália.

Ana Cristina Leonardo said...

A mecânica quântica nunca chegaria tão longe

... lá estás tu!

João Lisboa said...

"Antes de mais, bem-vindo regresso ao mundo dos vivos!"

Convém não lançar ainda muito foguetório... a coisa não foi simples.

"... lá estás tu!"

lolada