31 December 2011

2011 - A INTANGÍVEL NOSTALGIA


Nijemo Kolo

Bem mais de meio século depois de Amália Rodrigues e algumas décadas a seguir a Camané, Cristina Branco e uma boa mão-cheia de outros que se encarregaram de fazer o fado viajar pelo mundo (mesmo naqueles casos em que aquilo que o mundo imaginava apreciar como fado não o fosse realmente), o Portugal que, oh quão fadistamente!..., ainda que sem se dar conta disso, todos os dias parafraseia Fernando Pessoa – “Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, define com perfil e ser este fulgor baço da terra que é Portugal a entristecer, brilho sem luz e sem arder, como o que o fogo-fátuo encerra. Ninguém sabe que coisa quer. (...) Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro” –, foi literalmente intimado a “orgulhar-se” porque Albânia, Azerbaijão, Burquina-Faso, Chipre, Coreia do Sul, Croácia, Cuba, Granada, Indonésia, Irão, Jordânia, Madasgáscar, Marrocos, Nigéria, Niger, Omã, Paraguai, Quénia, Venezuela e mais quatro ou cinco países nos autorizaram a fazê-lo, consagrando-o como “património intangível (logo o fado em que se deve tanger a guitarra...) da humanidade”. Derrotando bravamente o kung fu de Shaolin, ficou-lhe, assim, eternamente garantida uma notoriedade planetária tão invejável como as da "nijemo kolo", da Dalmácia ou do ritual de transplantação do arroz, de Mibu e Kawahigashi, no Japão (dois dos outros felizes contemplados pela UNESCO).






















Enquanto isso, em Retromania: Pop Culture’s Addiction To Its Own Past – e a “viciação no passado” não seria uma magnífica definição do fado? –, Simon Reynolds colocava sob o microscópio o património cultural pop que ainda não teve acesso ao passaporte para o Olimpo dos imateriais (é só esperar mais umas décadas: em 2001, os ABBA já foram tema de exposição no Museu de Artes e Tradições Populares de Estocolmo) e, assombrado por uma inquietante interrogação (“Será que o maior perigo para o futuro da nossa cultura musical é... o seu passado?”), recordava os momentos do psicadelismo, do pós-punk, do hip-hop ou das raves “quando o metabolismo pop fervilhava de energia”, invectivava as jovens bandas em que “sob as faces macias e rosadas, se adivinha a pele macilenta das velhas ideias” e, quase paralisado pela dúvida “é a nostalgia que bloqueia a capacidade da nossa cultura para seguir em frente ou tornámo-nos nostálgicos porque ela desistiu de avançar?”, terminava com uma declaração de confiança no futuro, “essa vertigem assustadora e eufórica da inexistência de limites que a melhor ficção-científica oferece”. Retromania, o livro foi, sem dúvida, o melhor álbum pop deste ano. Mas se, de novo, confirmando Reynolds, nenhum sismo estético ocorreu, muito boa música continuou a acariciar-nos os tímpanos e nem toda cheirando a naftalina.

(2011)

3 comments:

Anonymous said...

Já viu a lista de melhores do ano do Simon Reynolds? Rihanna, Britney Spears, Kesha, ... o gajo passou-se!!
Nuno Correia

João Lisboa said...

O Simon Reynolds é daqueles de quem é uma felicidade discordar. Ou concordar.

Táxi Pluvioso said...

Há muita viciação há, mas não é no passado, ainda bem que temos esse derrubador de paradigmas chamado Relvas.

Que fado e música boring tenham um ano pródigo.

BOM ANO