27 September 2014

ASSUNTO DE ESTADO


Custa a crer que o mundo tenha desejado continuar a existir depois de Shakespeare. E depois de Rimbaud, Pessoa ou Borges. Não é verdade que não haja insubstituíveis. Não serão muitos mas, para todos aqueles que dizem o que mais ninguém diz de um modo que nenhum outro disse antes ou dirá depois, não se conhece outra palavra. É por isso que não se deve estranhar que o último álbum de Leonard Cohen, Popular Problems, publicado esta semana, um dia depois do seu 80º aniversário, esteja a ser tratado como um assunto de Estado. E, se há circunstância em que a expressão “assunto de Estado” não soa pomposamente tonta, é este. Em Londres, na Mac Donald House da Canada High Comission, foi apresentado por Gordon Campbell, Alto Comissário para o Reino Unido desde 2011, na qualidade de tesouro nacional. Tal como já havia acontecido nos seus equivalentes institucionais de Los Angeles e Bruxelas.


Não devemos levar-lhes a mal. Leonard Cohen é tudo menos património geograficamente privado mas, tivéssemos nós (ou quaisquer outros) um Cohen, e mereceríamos cobrir-nos de vergonha se não fizéssemos o mesmo. Por aqui, não paira, no entanto, qualquer espírito de testamento final. É o próprio Leonard que, apesar de, a poucos metros de distância, parecer ínfimo, frágil, quase imaterial, anuncia estar o próximo volume a caminho, e que, naturalmente, se poderá chamar Unpopular Solutions. Algo como o terceiro painel de um tríptico inaugurado com Old Ideas, o que, se pensarmos um segundo, não é senão a persistência naquilo de que, desde Songs Of Leonard Cohen, não encontra o ponto de fuga (e os humanos de todos os tempos com ele): amor, sexo, culpa, redenção, morte, êxtase e condenação.


Há canções e textos que foram escritos a uma velocidade “assustadoramente rápida”, outras – como "A Street" e "Born In Chains" – que levaram entre uma e quatro décadas a serem concluídas (“em parte, por perfeccionismo, noutra parte, por pura preguiça, e, em ‘Born In Chains’, por mudança do meu muito inseguro ponto de vista teológico”): “Creio que foi Auden que disse que um poema nunca é terminado, é apenas abandonado. Não pretendo inventar a roda. Pego em formas que já existem e faço o meu trabalho sobre elas. Sinto-me grato por poder chegar ao fim de algumas das canções que inicio. Se soubesse de onde vêm as boas canções, ia até lá muito mais vezes. Pedem-me, frequentemente, conselhos. É um engano porque o meu método é obscuro e não pode ser replicado. Escrever canções é semelhante a ser uma freira: é o matrimónio com um mistério. Procuro sempre descobrir o caminho para o centro de uma canção. Tal e qual como no resto da vida. E o resultado não é muito melhor… o único conselho que posso dar é que, se não desistirmos dela, uma canção acabará sempre por ceder. Mas não me perguntem quanto tempo poderá isso levar…”


Se é possível identificar uma linha a unir os pontinhos, “é um travo de desilusão… mas só dei por isso no fim”. As vacilações teológicas poderão também rondar em "Almost Like The Blues", entoada numa voz extraída da fundura das trevas (“There is no god in heaven, and there is no hell below, so says the great professor of all there is to know”), a mesma que, em "Samson In New Orleans", se interroga “And we who cried for mercy in the bottom of the pit, was our prayer so damn unworthy the Son rejected it?”, mas, como recomendam os melhores e mais perversos tratadistas do horror, introduzindo o tempero da ironia negra e subrepticianamente brechtiana, no discurso (“I saw some people starving, there was murder, there was rape, their villages were burning, they were trying to escape (…) there’s torture and there’s killing, there’s all my bad reviews, the war, the children missing, Lord, it’s almost like the blues”).



“Almost like the blues” seria, aliás, uma bela sinopse para Popular Problems. Nas canções escritas, a quatro mãos, com Patrick Leonard, o que se escuta é quase-blues, quase-gospel, quase-folk, um "ersatz" de tudo isso, superiormente obrigado a participar do sentido da voz e das palavras – é favor colocar o mais intenso acento tónico em “voz” e “palavras” -, sem escrúpulos de “autenticidade”, mas com a máxima potência na possibilidade de expressão. Interrogado sobre as suas opiniões políticas, Leonard Cohen declara-se como “um optimista que ainda não saiu do armário” mas, em simultâneo, confrontado com a condição de canadiano, explica que “os canadianos olham para os EUA como as mulheres vêem os homens, com muito cuidado”. É um excelente "soundbyte". Falando, porém, de política pura e dura, não há académico pós-doutorado que tenha ido além da espectrografia que Cohen, sobre a silhueta de um "sample" de canto arábico, em "Nevermind", exerce sobre o (seu) Médio Oriente e posteriores jihadismos adjacentes: “I was not caught, though many tried, I live among you, well disguised (…) there’s truth that lives and truth that dies, I dont’ know which so never mind”. Acessoriamente, explica que o motivo por que aborda estes tópicos é apenas consequência de andar pelo mundo e estas coisas apanharem-se “do ar”: “Tenho passado toda uma vida a construir uma posição política que ninguém consiga decifrar”.


O programa de governo do velho estadista da “tower of song”, porém, é tântrico (“It’s not because I’m old, it’s not what dying does, I always liked it slow, slow is in my blood (…) you want to get there soon, I want to get there last”), um tanto ou quanto sabiamente hesitante na definição do adversário (“You put on a uniform to fight the Civil War, it looked so good I didn’t care what side you’re fighting for”), seguramente arrepiante (“I see the ghost of culture with numbers on his wrist, salute some new conclusions which all of us have missed”). Mas, se alguém pergunta ao literato ancião - que confessa “leio muito pouco” - o que desejaria para o seu iminente aniversário, ele hesita, conta como, na tradição familiar, esse tipo de festas e celebrações nunca foi muito levado a sério e sugere “talvez, fumar um cigarro”. Quem o escuta, vários hertz abaixo de Tom Waits, em "Did I Ever Love You" ou "Samson In New Orleans", nunca pensaria que tal terapêutica fosse necessária. Ele não o diz mas adivinha-se que a oferenda ideal seria “a weekend on your lips, a lifetime in your eyes”.

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