20 November 2015

(Texto publicado, em 1999, no "Expresso"/"Vidas" a propósito de um dos ramos de negócio das escravas do estalozito e empreendimentos europeus e mundiais afins)

O fim do mundo 



A "febre do milénio" foi oficialmente inaugurada em Portugal, no mês passado, com as primeiras notícias acerca da proliferação, de norte a sul do país, das chamadas «cruzes do amor», impulsionadas por um sacerdote-profeta-apocalíptico e uma seita cristã fundamentalista - a Fraternidade Missionária do Cristo Jovem -, com sede em Famalicão. Portugal terá o apocalipse que merece mas, mesmo assim, na qualidade de último ano antes de 2000, 1999 promete bastante animação neste capítulo. Para participar convenientemente no desvario milenarista, no entanto, é também útil saber que tudo o que nos próximos meses se irá inevitavelmente passar tem raízes e antecedentes que já vêm de trás e que, agora, naturalmente, conhecerão o seu grande momento. 

Para uma visão mais completa do assunto, é essencial aceder ao site da associação Les Amis De La Croix Glorieuse (171, Rue de l´Université - 75007 Paris): fornece toda a informação acerca dos seus objectivos e da "mística" Madeleine Aumont, que, em 1970, em Dozulé, na Normandia, iniciou esta nova grande cruzada. Nascida em 1924, na aldeia de Putôt-en-Auge, no domingo seguinte à Páscoa de 1970 a costureira Madeleine teve a primeira de cinquenta experiências transcendentes, durante as quais "um poder sobrenatural se apossou de mim e o mundo deixou de existir, o meu corpo se anulou e havia apenas deus em mim e eu em deus". Esse foi o ponto de partida para uma missão de "salvação universal da humanidade" das consequências do apocalipse iminente, a qual deveria passar pela edificação das famigeradas "cruzes gloriosas" contra Satanás e a Babilónia ateia e cosmopolita.

A santinha Madeleine Aumont

Segundo explica Daniel Blanchard, as dimensões dessas cruzes deveriam obedecer a um rigoroso simbolismo esotérico: os 738 metros de altura da cruz (ou os 7,38 metros em versão doméstica reduzida), oca no interior, tal como o Santo dos Santos do Templo de Jerusalém, correspondem a idêntica dimensão do monte Gólgota, onde Cristo foi crucificado; 6, o número que simboliza o Homem, encarnação do Messias que nos libertará da Besta, cujo número é 666, deverá estar inscrito na estrutura da cruz; 8, o número do Messias e da Ressurreição, aparecerá obrigatoriamente nas rosetas de 8 cruzes nas três extremidades do crucifixo em volta de uma estrela de 8 pontas; as 12 colunas da cruz simbolizarão os 12 patriarcas de Israel, os 12 apóstolos e as portas da Jerusalém Celestial do Apocalipse de S. João; e o santuário a erigir, junto à cruz, deverá ser construído em paredes de jaspe de 144 x 144 x 144 cúbitos (ou 72 metros), o número revelado por Deus a S. João para a edificação da Nova Jerusalém, em Apocalipse 21:22.


A filha Joana d´Arc 

Se, à primeira vista (mesmo que as cruzes, orçadas em cerca de 600 contos por unidade, não correspondam fielmente a um tão preciso critério místico-geométrico), as consequências da nova seita religiosa que daí emergiu não seriam piores nem melhores do que as de muitas outras idênticas, será, contudo, útil conhecer um episódio, entre vários, relacionados com ela. No início da década de 80, um mestre de ioga do departamento de l'Aisne, em França, "abençoado", ele próprio, por "aparições divinas", tomou conhecimento através da revista "Atlantis" das "visões" de Madeleine Aumont. Entre 1980 e 1982, conduziu a sua comunidade de discípulos (professores, médicos, psicólogos, comerciantes), todos os fins-de-semana, a Dozulé, para estudar e transcrever os cadernos e cassetes em que estavam registados os relatos das "aparições" de Madeleine Aumont.


No final de 1981, anuncia aos discípulos que, segundo as profecias de outra vidente - Marie Julie Jahenny -, a 16 de Novembro, ele iria ter um filho que "libertaria a França". A 12 de Novembro nasce-lhe... uma filha, mas ele não se perturba com tão pouco. Tratar-se-ia, afinal, da reencarnação de Joana d´Arc, enviada pelos céus para restabelecer a monarquia em França! No fim de 1982, o "mestre" anuncia o cataclismo próximo: a guerra civil e a fome generalizadas, na sequência de uma catástrofe nuclear que arrasará Paris, Lyon e Marselha mas poupará a Bretanha, posto o que, em 1985, um exército comandado pelo rei de França abandonará o seu lugar de exílio para se dirigir ao santuário de Dozulé onde, aos pés da Cruz Gloriosa, estará presente para assistir à Segunda Vinda de Cristo à Terra. Para escapar à tragédia final, os discípulos abandonam as suas obrigações profissionais e as famílias, armazenam provisões alimentares e acompanham o "mestre" para viver em comunidade, na Normandia. Ao fim de um ano, porém, a maioria deles apercebe-se da farsa e, não sem grandes dificuldades, deixa a companhia do "mestre" e procura retomar as suas vidas individuais.

 O guru cristão, judaico... 

Outro guru que se faz também anunciar através da aparição milagrosa de "cruzes de luz" é o "Maitreya, Instrutor Mundial" e encarnação simultânea do Messias judaico, do Krishna hindu, de Jesus Cristo, de Buda e do "iman" Mahdi muçulmano. O seu porta-voz terreno é Benjamin Creme (pintor "modernista" escocês, esoterista e teósofo, nascido em 1922), que dirige a revista mensal "Share International. Segundo diz, teria sido contactado, em 1959, pelos "mestres da sabedoria" que lhe anunciaram que, em Julho de 1977, o Maitreya desceria do seu refúgio milenar nos Himalaias para tomar residência numa comunidade indo-paquistanesa de Londres, onde vive como um homem comum de quem se desconhece a verdadeira dimensão espiritual. Porém, através de diversos contactos discretos estabelecidos com os centros de poder mundiais, terá sido ele o responsável pela libertação de Nelson Mandela, pelo fim da guerra entre o Irão e o Iraque, pela retirada das tropas cubanas de Angola e pela aproximação entre os EUA e a ex-União Soviética, tendo igualmente previsto os sismos da Arménia, da Califórnia e da China e profetizado agora a inevitável paz entre Israel e a Palestina.

Maitreya em tournée, em 1988

Aparição em Portugal 

Aparecendo miraculosa e inesperadamente em inúmeros lugares do planeta para anunciar a "boa nova" (em Portugal, segundo a informação oficial, ter-se-á "manifestado", no Porto, a 26 de Novembro de 1995 e a 30 de Novembro de 1997 e, em Lisboa, a 22 de Novembro de 1995 - levantem-se as testemunhas!), "assim que for possível", revelará o seu verdadeiro estatuto espiritual. Isso terá lugar no "Dia da Declaração", quando as redes internacionais de rádio e televisão o convidarem a falar ao mundo inteiro. Nesse momento, afiança a "Share International", "veremos o seu rosto na televisão e cada um escutará interiormente as suas palavras, por telepatia, na sua língua materna, enquanto o Maitreya se dirigirá, simultaneamente, em pensamento, a toda a Humanidade. Todos os homens viverão esta experiência mesmo que, nesse momento, não estejam a ver televisão ou a ouvir rádio. É dessa forma que saberemos que este homem e só ele é o verdadeiro Instrutor Mundial para toda a Humanidade!". Entretanto, e embora ele possua uma pitoresca tendência para se "manifestar" em parques de estacionamento, paragens de metro e de autocarro (procurar em Apparitions Privées de Maitreya), as "cruzes gloriosas de luz" que o anunciam têm sido avistadas da Califórnia ao Tennessee, à Eslovénia, ao Canadá, à Nova Zelândia, às Filipinas ou à Florida. Não restam dúvidas que, em matéria apocalíptica, 1999 promete muito. (João Lisboa, Março de 1999)

1 comment:

alexandra g. said...

Lido o texto e focada (sem qualquer propósito voluntário, assim em catapultada para trás e para diante) tudo o que me vem à memória (que em 1999 estava factual, entretida e deliciadamente a amamentar a minha nigga :) são as cenas da multiplicação do pão/dos peixes ("600 contos") e a "telepatia", em cenas à união monetária e espiritualismo de compostagem.

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p.s. - já tinhas, então, percebe-se agora, a mania de pensar e escrever bem como o caralho :)