28 December 2016

O FUNDO DO COPO


O luxuoso Dorchester, com vista sobre Hyde Park, foi o hotel escolhido por David Bowie para, no domingo 16 de Julho de 1972, acolher dezenas de jornalistas americanos a quem iria apresentar Ziggy Stardust And The Spiders From Mars. Lou Reed (de unhas "bordeaux" e óculos escuros) e Iggy Pop (cabelo prateado, olhos pintados e t-shirt dos T. Rex) estavam presentes. E, conta Simon Reynolds em Shock And Awe: Glam Rock And Its Legacy (arrume-se já o assunto: ensaio pop do ano), Bowie, dirigindo-se aos convidados, declarou: “Pessoas como o Lou Reed e eu anunciam, provavelmente, o fim de uma era... e digo isto, catastroficamente. Qualquer sociedade que deixa à solta gente como nós está seriamente perdida. Somos ambos muito confusos, paranóicos, absolutos desastres ambulantes. Se somos a vanguarda de alguma coisa, não somos necessariamente a vanguarda de algo bom”. A 8 de Janeiro de 2016 – data do seu 69º aniversário e antepenúltimo dia de vida – David Bowie oferecia ao mundo uma derradeira Estrela Negra. Mas não suficientemente negra. You Want It Darker, murmurou Leonard Cohen, duas semanas antes de recusar ser testemunha do que, há muito previra (“I've seen the future, brother: it is murder”): no dia seguinte a ter “saído de jogo”, o planeta – seriamente perdido, sim – dava-se conta de que um candidato apoiado pelo Ku Klux Klan e pronto a partilhar o saque com um tirânico ex-director do KGB chegara à presidência dos EUA.


Em “30 Days 30 Songs” (que cresceria até “30 Days 50 Songs”), um site independente que, na qualidade de “artists for a Trump-free America”, entre 10 de Outubro e 8 de Novembro, juntou R.E.M., Franz Ferdinand, Aimee Mann, Andrew Bird, Moby, Lila Downs, Matt Berninger, Mirah, Ani Di Franco, Bob Mould e diversos outros, dispararam-se rajadas de agit-prop musical contra o Orange Clown e Michael Stipe espumou de fúria a propósito da utilização de "It’s the End of the World as We Know It (And I Feel Fine)" num comício de Trump (“Go fuck yourselves, you sad, attention-grabbing, power-hungry little men. Do not use our music or my voice for your moronic charade of a campaign”), tal como fariam os Rolling Stones, Neil Young e Aerosmith. No centenário do Manifesto Dada, filho natural da Primeira Grande Guerra, e nos 40 anos do punk (a cujas relíquias, avaliadas em 5 milhóes de libras, o filho de Malcolm McLaren lançou fogo, em protesto contra a sua mumificação institucionalizada no UK do Brexit), nada impediria a História de, uma vez mais, recuar vertiginosamente.


Talvez não seja motivo para, nos EUA, voltar a cantar-se já, já, "Strange Fruit". Mas a crua reportagem de PJ Harvey por alguns dos lugares da peste contemporânea (Afeganistão, Kosovo, os bairros esquálidos da periferia de Washington D.C.) em paralelo com a metralha de videos de pesadelo de Nadya Tolokonnikova/Pussy Riot ("Chaika"/"Straight Outta Vagina"/"Organs"/"Make America Great Again") deixam adivinhar o renascimento de uma contracultura de protesto. E, é verdade, o artista anteriormente conhecido como um impronunciável "Love Symbol" regressou à condição do confirmadamente mortal Prince Rogers Nelson. E, valha-nos isso, Dylan ganhou o Nobel. E, tudo bem medido e avaliado, parece que, afinal, 2016 não terá sido o pior ano de sempre. Que nunca venhamos a ter saudades dele. Porque não se trata de saber se estava meio cheio ou meio vazio mas, sim, se o fundo do copo está furado ou não.

5 comments:

zeromilhoes said...

"Dylan ganhou o Nobel" - Obama também, o da Paz, em dois mil e tal. E depois? E depois ganharam o que outros perderam. Cohen perdeu para Dylan - e não é o João o primeiro a dizer que a música em Cohen pouco interessa? Se Obama ganhou, faz sentido (pelo menos para mim) Dylan ter ganho - e não é preciso fazer um desenho.
2016 foi uma merda.
2017 vai ser melhor: vamos ter o centenário de Fátima e a presença do senhor Francisco.
Sugestão para uma label dedicada ao centenário: sem anûs.

Cumprimentos


alexandra g. said...

gosto da tua lógica, como é habitual (e raras as excepções a esta regra).

:)

alexandra g. said...

p.s. - ocorre-me que poderias também ter intitulado a coluna (não li o jornal, mas percebo quando se trata da tua coluna aqui reproduzida - espertinha! - como se os sinais não estivessem estilísticamente à vista :) assim:

O fundo do corpo

______
O meu título é mais bonito que o teu :P
(mas eu jamais conseguiria escrever este sumarento e odorante texto :)

João Lisboa said...

"Sugestão para uma label dedicada ao centenário: sem anûs"

:-)

A considerar.

"O meu título é mais bonito que o teu"

É. Mas o p.o.v.o. não chegava lá.

(não que isso importe muito...)

alexandra g. said...

Importa, sim, mais do que possa exportar...