21 August 2017

O ELOGIO DO ERRO

  
Num dos 115 cartões das “Oblique Strategies”, de Brian Eno (inspiradas nos “Event Scores” de George Brecht, um dos vanguardistas do Fluxus), lê-se “Honor thy error as a hidden intention”. Essencialmente o mesmo que, segundo Herbie Hancock, Miles Davis lhe terá dito depois de, durante uma interpretação de "So What", ele ter tocado no piano um acorde errado (em torno do qual Davis continuou a improvisar de modo a torná-lo “certo”): “Quando tocas uma nota errada, é a nota seguinte que decide se isso foi bom ou mau. Os erros não existem, existem apenas oportunidades para improvisar”. Em 2010, num documentário da Arena TV, Eno pegava no assunto por outro ângulo, o da obsessão pela eliminação de toda e qualquer imperfeição que a tecnologia actual permite: “A tentação da tecnologia é polir tudo, homogeneizar tudo, até que todos os compassos soem iguais. Até que não reste nenhum vestígio de vida humana”.



E, quatro anos depois, a propósito de uma "box-set" de Fela Kuti que compilou para a Knitting Factory Records, acrescentava: “Actualmente, podemos fazer e refazer tudo. Mas muitos dos discos de que mais gostamos são aqueles que não foram infinitamente retocados de modo a ficarem perfeitos. A pergunta que todos fazemos é: será que fica melhor assim? A música ganha, realmente, alguma coisa com isso? É uma tentação a que é muito difícil resistir. Se, numa gravação, descobrirmos uma nota errada, no passado dir-se-ia, é uma grande interpretação, fica mesmo assim. Agora, reafinamo-la. E interrogamo-nos sempre: ao fazer a correcção, o que teremos perdido da tensão daquela performance, da sensação de humanidade, de vulnerabilidade, de verdade orgânica?” O mais recente contributo para o debate veio de J. Willgoose, Esq., máquina de pensar dos Public Service Broadcasting, autores do recente e óptimo Every Valley. Numa TEDx Talk de Junho do ano passado, em Londres, cujo tema era “Live music should go wrong”, reflectindo sobre o aborrecimento que podem ser concertos nos quais, noite após noite, tudo se repete com uma precisão mecânica, foi mais longe: “O crime é uma expressão da liberdade. Isto é, não é possível existir uma sociedade livre sem que exista a possibilidade de serem perpetrados crimes horríveis. A única sociedade em que não poderia existir nenhum crime seria aquela em que também não existiria nenhuma liberdade. Esse mesmo princípio pode ser aplicado à música ao vivo: deve conter o potencial para o erro, a possibilidade de que alguma coisa imprevisível aconteça e de que algo corra mal”.

2 comments:

t. said...

O sufixo 'Esq.' será meramente estético ou resultante de uma forte consciência de classe? (de qualquer forma, antes este do que outros).

João Lisboa said...

:-)

Não sei. Quando falar com ele, pergunto.